terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O anjinho

por Ju Blasina
* Ilustração em breve.




Na véspera do sétimo Natal de sua vida, ela carregava em silêncio o peso das asas falsas. Noites antes, ouvira da mãe que deixaria de ser um anjinho. E as verdadeiras asas sequer haviam crescido. Desde então, só pensava em evitar o triste fim, mas como? Ao soar o sino, aproveitou-se da confusão do presépio e fugiu. Dias depois, achou-se a auréola num terreno baldio. Descobriu-se a duras penas que não é raro e nem difícil tornar-se anjo para sempre.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

BRUMAS NEGRAS I


Curte ler terror?
Contos, poemas, entrevistas, quadrinhos e muito mais!Tudo com o bom e velho terror.

Confira então nosso primeiro número:

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cicatriz

Por toda a minha vida, fui um profundo cético. Desde alguns eventos desagradáveis ainda na tenra infância, tenho me apegado a um pragmatismo quase fanático, talvez como uma forma de defesa contra coisas que me abalariam a sanidade se realmente fossem reais. Talvez isso me torne o ser humano mais vazio ou hipócrita que a grande maioria das pessoas poderia conhecer, mas elas jamais entenderiam minhas motivações mais fundamentais. Quando se tem uma ferida enterrada em sua alma, é natural que se tente isolá-la de todas as formas, jamais se aproximando dela o mínimo que seja, tanto em intenções quanto em pensamentos. Entretanto, para alguns, essa ferida torna-se uma eterna chaga, sempre a verter agonia escarlate, criando o jardim perfeito para que floresça a loucura. Para estes, nos quais me incluo, restam apenas os caminhos da decadência ou o eterno combate a fim de suturar tal ulceração. Nesta batalha interior, tomei como armas o raciocínio lógico e meu mencionado ceticismo fanático, os salvadores de minha tênue sanidade.

Desde a juventude, dediquei todos os meus esforços a fim de obter um sólido conhecimento acadêmico, através do qual provaria irreais todo tipo tal de fantasia paranormal, comprovando, sobretudo a mim mesmo, o quão tolo era meu sofrimento pessoal. E assim, por anos, tentei enganar-me. Fui insensível para com minha própria pessoa, tentando enterrar-me sob camadas de retórica aplicada e estudo avançado. Quanto mais longe eu ia, mais difícil me era conseguir olhar para o início de toda aquela trajetória. Aos poucos, acabei por quase convencer-me de que minha macabra experiência não passara de um fruto de minha febril imaginação infantil, tal era meu grau de rejeição e racionalização. Mal suspeitava que esta era apenas a semente de um mal muito maior, regada pelo meu auto-infligido martírio interior até seu desabrochar.

Meus antigos terrores se utilizaram dos insondáveis portões do mundo onírico para retornarem, vestidos em noite escura. Abateram-se sobre minha doce amada, maculando seus frágeis sonhos, tal era seu grau de sordidez. Quando ela acordou, aos gritos mais estridentes, um antigo medo cravou-se em meu peito, talvez fruto de minhas memórias quase inconscientes. Tão paralisante era seu choque que ela nenhuma palavra de explicação pôde me dirigir, limitando-se a fitar com olhos sem foco algum canto escuro qualquer, trêmula. Apenas quando já se findava a hora mais fria da madrugada que esboçou alguma reação, embora eu tivesse por preferência que ela se mantivesse da mesma forma até o fim de seus dias a tê-lo feito. Com o sangue a congelar nas veias, ouvi de seus lábios os mesmos dizeres que os meus já haviam, há tanto anos, proferido: “Não desejo conhecer verdade alguma. Deixem-me em paz.” Dito isso, jogou-se a um intenso pranto desesperado.

Oh, quantos dias febris se seguiram depois. Minha amada era visitada sempre que as trevas se abatiam sobre o céu, não havendo nem mesmo a necessidade que conciliasse o sono. Segundo seus relatos, eles sempre lhe revelavam coisas terríveis, instruindo-a com sua catequese profana. Procurei, através de todos os meios que me eram acessíveis, uma resposta para aqueles acontecimentos tão repentinos, que insistia em chamar de surtos psicóticos, mesmo não havendo razão nenhuma aparente para que eles surgissem. Despendi toda minha pequena fortuna em médicos e especialistas, obtendo sempre a mesma falta de resultados.

A capacidade de repousar tranquilamente tornou-se inatingível, pois meus pensamentos convergiam sempre para minha nobre amada e sua situação deplorável, atormentada por criaturas além da compreensão. Minha antiga cicatriz voltava a afligir-me, corroendo-me novamente a razão. Mesmo que meu interior gritasse a verdade, negava-me em aceitá-la terminantemente. Meu orgulho de homem da lógica fora ferido, sobretudo por se tratar de algo tão próximo, tão íntimo, mas ao mesmo tempo tão distante de toda explicação humana. Ah, que torturante me era contemplar os olhos encovados de minha mulher, privada de toda paz de espírito, bombardeada por segredos tão escusos que ela não ousava sequer sussurrá-los sob o véu da inominada escuridão.

O arrastar do tempo, junto com a falta de respostas, fazia-me delirar. Cada novo grito de terror me era uma nova facada no coração. E como meu interior já sangrava! Começava a me sentir pesaroso, pois sabia que todo aquele tormento era destinado e originado por mim. Aos poucos, meu amor por minha noiva foi transformando-se em culpa, e eu já sofria mais que a própria, mergulhado em meus terrores pessoais. Aquilo era tão absurdo e insuportável que parecia simplesmente não ser real. De fato, comecei a desejar que realmente não o fosse, e esse desejo acabou por motivar o pior de meus pecados.

Com lágrimas nos olhos, disparei sete vezes contra minha pobre amada, dando por certo que livrava a nós dois de um peso terrível. Seu sangue rubro manchava os alvos lençóis que lhe serviram de manto de morte, assim como a loucura grassava por minha psique em cheque. Agora, não haveria nada mais que a culpa para desafiar minha razão, e rogo para que eles permitam que assim seja, pois nenhum homem suporta ter seus pilares destruídos de forma tão súbita e sem piedade.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Óbolos a Alice

O início de toda essa espiral decadente de insanidade e horror deu-se pelos últimos idos de novembro, em meio a tardes frias e com neve no horizonte. Seria talvez o segundo ou terceiro caso apenas naquela quinzena, o que começava a perturbar-me, mesmo sendo eu um investigador de vasta vivência. Uma espécie de onda suicida tomara conta de meu distrito, culminando em mortes cada vez mais anormais. O último pobre-diabo fora um rapaz ainda jovem, embora de compleição algo funesta e digna de pena, encontrado após uma brusca queda com um sorriso tétrico no rosto, cuja sordidez fora acentuada pelos efeitos do impacto contra o solo. Aparentava ter partido abraçado em desespero, esculpindo para todo o sempre um grito em sua expressão cadavérica.

Acreditando haver mais que infortuna coincidência entre todos esses casos de falecimento, lancei-me em investigações a fim de satisfazer minha desconfiança. Minha intuição parecia sussurrar-me que havia algo de macabro por trás das tecituras da Dama do Destino, e mal delirava eu o quão amarga me seria a certeza dessa suspeita.

Valendo-me de uma sorte quase sobrenatural, por fim descobri onde residia o último dos suicidas. Fora há alguns séculos, sem dúvida, um requintado solar de grandes senhores do campo, ligados pela ancestralidade até o rapaz que me motivava a investigação, agora engolfado pelo irrefreável crescimento urbano. Entretanto, a construção possuía um aspecto que indicava abandono, além de um quê soturno, dado sua semelhança com o medievo estilo arquitetônico gótico combinada com sua imperturbável imensidão. Uma vez lá dentro, parecia sentir o peso do silêncio sobre mim, como se eras passadas e vidas pregressas ainda resguardassem aquele local. Olhos feitos do mais absoluto nada me vigiavam e um calafrio corria-me pela pele constantemente. Meus passos entrecortavam minha respiração e ecoavam dentro da minha paranóia, que de tão acentuada feria o meu orgulho de homem cético. Entretanto, não há homem sobre essa Terra capaz de suportar totalmente a diabólica pressão que aquele casarão exerce sobre a sanidade.

Após esquadrinhar por um longo período de tempo, encontrei uma biblioteca de grandes proporções, mesmo para nosso período vitoriano, que parecia ser o cômodo do solar mais freqüentado nos últimos tempos. Ali quedei-me por dilatadas horas, examinando volumes intrigantes que pareciam ter sido grafados a mão e se espalhavam por todas as prateleiras. Oh, e que lúgubres histórias contavam! Relatos que culminavam todos em uma morte solitária, vidas que terminavam sem nenhuma menção honrosa além de livros empoeirados e esquecidos. E que terror senti ao notar-me, quando minha consciência finalmente deu-se conta plenamente da situação em que encontrava, cercado por um obscuro museu de epitáfios, tão isolado do mundo e de tudo que era vivo.

O documento de data mais recente consistia num diário encapado em couro, também grafado a mão com nanquim cor de obsidiana, que de certo narrava os últimos suspiros do jovem senhor suicida. Através daquelas páginas cheias de peso e melancolia, constatei que seu autor parecia sofrer de algum distúrbio de ordem mental, talvez algum caso de esquizofrenia ou algo semelhante, além de estar caído em encantos por uma donzela de nome Alice. Sentindo que não mais deveria violar aquele depósito de memórias, abandonei-o da mesma forma que o encontrei, deixando que o destino cuidasse do mesmo.

Entretanto, os dias que se seguiram me viram tomado por uma espécie de curiosidade mórbida, um certo fascínio pela morte que parecia haver desperto em mim as obras contidas naquele casarão esquecido pelo mundo. Vozes lamuriosas assombravam meus sonhos, talvez provindas dos mais abissais recessos de minha mente ou dos frios rincões do reino de Hades. Perguntas ressonavam junto a pedidos desesperados de autores desconhecidos, um balé destoante que corroia-me a psique. A mácula do além-túmulo deitara-se sobre minha face, fazendo-me ouvir seu réquiem sussurrante com notas cada vez mais claras. Não restava-me mais nada a fazer além de atender ao chamado, uma idéia tão absurda quanto bizarra. Oh, como eu já estava avançado na espiral da insanidade!

Mais uma vez, lancei-me aos tomos empoeirados do solar do suicida, lendo-os com uma voracidade selvagem. Era tênue a barreira que separava-me de tocar as faces lívidas dos pobres angustiados que deram origem àquelas histórias. Sentia-os ao meu redor, dizendo coisas que ouvidos sãos e vivos não deveriam escutar. Meu ceticismo de homem iluminado fora esmigalhado sob botas de ferro, e a insegurança derivada de tal perda me apavorava e enlouquecia. E assim, como um animal acuado rilhando os dentes, descobri como encontrar aquela que talvez pudesse trazer alguma luz ao meu caminho soturno.

Mesmo com toda sua poesia, como eram impotentes as linhas que descreviam aquela donzela diante do esplendor real de sua beleza! Era a própria encarnação de Vênus, desenhada em tons mais barrocos. Vestes enlutadas cobriam seu delgado corpo e a Criação parecia se desdobrar sob seus pés. Aparições taciturnas eram suas aias, carregando um vestido de tecido nobre em suas mãos e o aroma da morte em seu encalço. Como era bela e triste a pobre Alice.

E assim, utilizando o dever de minha profissão como apoio, conheci aquela jovem. Por muitas vezes trocamos palavras, embora ela pouco se dispusesse a falar. Olhos do além vigiavam-na como possível, mesmo impotentes, e assim seguia o seu sofrer. Dentro dos meus limites de cavalheiro e humano, criei laços com a jovem Alice, servindo-a como um confessor e protetor, conforme ela se tornava mais aberta para comigo, o que demandou uma dose razoável de tempo e paciência. Pude aos poucos começar a mensurar a razão dos suicídios de alguns dos envolvidas com ela. De certo, seus fins foram apenas a culminância de uma longa e debilitante tragédia pessoal, abastecida pelos encantos letais daquela dama dos mortos. Mesmo ciente de tais conclusões, entretanto, quase vi-me trilhar o mesmo caminho que tais pobres desafortunados.

Em certa noite de lua nova, através de um telegrama borrado por lágrimas, Alice segredava-me uma agonia lacerante, implorando-me ajuda. Fui o mais rápido que pude até sua moradia, encontrando-a envolta por espectros que uivavam dor e loucura. A morte a clamava, e ela pranteava em retorno, incapaz de tirar a própria vida, mas desejosa de enveredar-se pelo Aqueronte. Ela implorava-me que a ajudasse a partir, ou morreria afogada em desespero. Como foram longos aqueles instantes de decisão.

Quando Caronte já se aproximava em sua barca, a idéia mais macabra surgiu em minha mente, que apesar de tal qualidade era paradoxalmente dotada de gênio e esperança. Implorei ao mítico barqueiro que levasse Alice, através de águas sombrias e turvas, até junto de seus amados, no reino dos que já se foram, mesmo sem ter transposto o limiar da morte. Ofereci-lhe o pagamento costumeiro, pagando os dois óbolos por Alice. Não sei se ele apiedou-se do estado deplorável ao qual eu me sujeitava em nome daquele pedido, que era motivado pelo mais altivo dos sentimentos e consciência de que era o certo a ser feito, ou se era por outro motivo impossível de ser concebido por um pobre mortal, mas aceitou realizá-lo após breve reflexão.

E assim, Alice partiu para os braços de quem amava, embora eu estivesse impossibilitado de vê-la ir-se embora. Para sempre o mundo da luz me foi negado, mas ao menos a morte não mais caminharia junto a uma dama no nosso mundo dos breves, arrastando almas torturadas para seus domínios obscuros através dela. Meu trabalho estava concluído.

domingo, 13 de setembro de 2009

O Dom do Corvo

Desde um terrível acidente, há alguns anos, desenvolvi uma espécie de capacidade extraordinária e sobre-humana, da qual pouquíssimo posso discorrer sobre suas causas ou origens. Consiste na habilidade de enxergar no olhar de cada pessoa quanto tempo lhe resta nesse mundo desprezível, numa espécie de contagem regressiva altamente subjetiva e irrevogável. Adquiri-a após um acontecimento que me pôs de frente ao abismo da morte, fazendo-me olhar por tanto tempo para seu fosso negro que agora não posso mais livrar minha visão de sua mácula. Ainda sinto seu hálito em minha face, que vem sempre carregado com uma amarga risada que expressa a talvez mais pura ironia que é nossa existência terrena. Se todos pudessem contemplar as provações do além, certamente mudariam em muito seu modo de agir e existir.

O que posso dizer de mais concreto a respeito de meu dom macabro é que ele certamente é capaz de abalar a sanidade de qualquer pessoa. Muitos talvez abandonar-se-iam ao mais puro desespero, tecendo prantos de prata intermináveis enquanto degustam amargamente seu niilismo particular na mais suja das sarjetas, enquanto outros se dedicariam a aliviar o sofrimento daqueles prestes a partir da melhor forma que lhes fosse possível, mesmo sem revelar a cruel verdade contida em seu olhar. Considero tais extremos uma inteira tolice, e certamente não faço as vezes nem de miserável nem de trágico herói. Mesmo um homem com o mais precioso dos poderes continua sendo um homem, e não seria diferente em meu caso. Não acredito na caridade pura de intenção nem na total falta de esperança, sobretudo por já ter presenciado pessoas que deram cabo dos atos mais nobres de suas vidas pouco antes de seu ocaso.

Minha sina é contemplar todas as facetas da morte, das mais benevolentes às mais trágicas. Muitos enfermos a esperam de braços abertos, enquanto outras pessoas deixam cicatrizes no mundo com sua ausência. Depois desses anos todos, sinto o soprar da destruição sussurrar-me no ouvido e guiar-me até onde tocará mais uma alma com seus dedos gélidos e esquálidos, sendo o olhar apenas uma lúgubre confirmação do que meu instinto já previa. Pobres humanos, que não podem sentir as brumas da morte se aproximando! Quanto sonhos não já vi serem ceifados subitamente, sem a menor premeditação por parte de seus idealizadores, enquanto alguns poucos livram-se do pesadelo de suas vidas. Certamente, uma rotina assim tornou-me um homem melancólico e taciturno, um corvo negro em pele de gente. O contato social tornou-se extremamente angustiante para mim, como qualquer um com um mínimo de sensibilidade poderia concluir. Não se pode ver doçura no sorriso de um amigo quando se vê a morte em sua face. É triste e solitária minha sina, digna das mais homéricas tragédias gregas.

Nesse solitário caminho, cujo meio é cheio de fins, carrego o fado que acredito que caiba a mim. Sei que não há nada pior para os falecidos do que o total esquecimento, pois é da lembrança de suas vidas terrenas que eles são feitos, portanto cuido para que nenhuma alma parta no total esquecimento. Aquelas cuja memória não dispõe dos corações de seus entes queridos para descansar tornam-se meus mais exaustivos trabalhos. Uma simples cerimônia fúnebre não seria o suficiente, portanto, empenho-me em criar uma crônica a respeito da pobre vida do recém-falecido. Minha casa tornou uma biblioteca dos condenados, volumes e volumes de histórias com o mesmo fim. Não era esse o destino que eu sonhava em dar para minha veia artística, mas certamente a aquisição de meu peculiar dom mudou todo o prognóstico de minha vida.

Entretanto, o último caso fez-me deparar com algo inédito. Encontrei-a velando o corpo de alguém que lhe era muito querido, certamente uma alma que partira plena de amor e boas lembranças. Seus cabelos eram da cor da noite e seus olhos de esmeralda, sua pele alva e seu rosto delicado e angelical. A epítome da pureza, se é possível existir algo assim. Olhei em seus olhos e vi o tempo escorrer junto com suas lágrimas, cada vez mais perto de seu fim. Fui imediatamente arrebatado por sua beleza e ternura, algo que nunca antes havia me acontecido e que eu julgava impossível, dado meu estado de existência. Passei a acompanhá-la em seu luto, pela primeira vez temendo verdadeiramente pelo fim de alguém.

Os dias passavam-se morosamente, enquanto eu conhecia aquela doce jovem que atendia pelo nome de Alice. Amava-a como se poderia amar a um anjo, uma espécie de admiração temerosa, pois receava macular sua pureza. Invejei secretamente a própria morte, pois poderia tocá-la tão intimamente muito em breve. E assim, nesse meu querer platônico, esperei pelo fim que se aproximava inexoravelmente.

Oh, e que doce surpresa não tive ao descobrir que estava enganado! Salve as ironias amargas da extinção. Mal sabia eu, pobre tolo, que aqueles olhos cristalinos não eram capazes de refletir a mácula da morte, mas apenas a mais terna das compaixões. Eram como um espelho, no qual eu previ inconscientemente meu destino. E fora o por muito negado amor que me levara à morte. Pobre Alice, fadada a derramar amargas lágrimas, pois fora ela que, numa tentativa de suicídio após ler uma carta que nunca mais poderei descobrir do que se trata, selou meu fim. E é nesse segundo infinito, após evitar a queda daquela doce jovem, que toda a minha vida transcorre diante de meus olhos. Já posso até mesmo sentir o além se abrir diante de mim, seu portal de ébano margeado pelo asfalto do solo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Navalha

por Ju Blasina
Vou te cortar lentamente
Com a lâmina das minhas angustias
Pouco afiada – mal mirada – dor alargada
Vou te cortar diariamente
Lenta e eternamente
Deixo a ti, a porta aberta
Deixo a ti, a chave incerta
Fecho os olhos, pouco alerta
Prendo a inspiração e a respiração
Ainda sinto o cheiro da tua transpiração
Tu não partes
Junta as partes e permanece ali
Preso a mim, presa a ti
Cordeiro do sacrifício
E novamente te toco
Como ferro em brasa
Penetro – faço de ti minha casa
Te mordo, te marco, te sofro, te rasgo
Pouco a pouco apago a vida em ti
O brilho dos teus olhos – opaco
O grito dos teus lábios – já fraco
E tudo o que resta – um naco
Daquilo que um dia sorriu em ti
Vou de cortar lentamente
Em muitas partes, em muitos ramos
E se te corto é porque te amo
E só me alimento de ti
Vou de cortar lentamente...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A DANÇA RUBRA DE LUNNA — PRÓLOGO

— NOTAS PARA O ESQUECIMENTO —

By Ju Blasina







“Esta é a história da minha vida e pós-vida.
Por que a estou escrevendo?

Não sei ao certo...
Talvez, ao final, um de nós descubra”




LUNNA





Imagem: Jairo Tx


EU ERA APENAS UMA CRIANÇA quando descobri que a vida seria difícil. Éramos uma pequena tribo errante: meus pais, avós e eu. Cresci ouvindo meu avô contar o episódio do meu nascimento:

Dizia ele que o mal e o bem, existentes em toda criatura, vieram divididos em duas partes, duas meninas e que, conforme mandava a tradição, a face do mal foi identificada e dada em sacrifício ao Sol, garantindo a mim uma vida feliz e próspera...

Se essa é ou não a verdade, eu nunca soube, mas passadas tantas décadas, desisti de esperar por tal recompensa. Lembro de espiar minha mãe chorando escondida enquanto segurava uma pequena mecha de cabelo. Talvez minha irmã tenha morrido em outras circunstâncias e meu avô, como grande contador de estórias que era, transformou o incidente nesta parábola, apenas uma das tantas parábolas que eu nunca entendi. Lamento que seus ensinamentos tenham se dispersado no fragmentar de minhas memórias. Guardo apenas uma frase clara, algo que ele me dizia com frequencia:

”Wenona, não ouça apenas o que as palavras dizem, ouça o silêncio,
procure o sussurro perdido no vento”.


Wenona não era exatamente um nome — eu era muito pequena para os grandes sonhos de onde vem os nomes — me chamavam assim, de acordo com a ordem do meu nascimento; em sioux, Wenona significa “a primeira filha”.

A montanha nunca me batizou, por isso, durante a vida, passei por muitos nomes. Nomes que nada significavam para mim, exceto que eu não sabia o que ser. Muitos acham que isso é besteira — muitos são idiotas — o nome pode determinar o destino do indivíduo. Um nome errado é mil vezes pior que nome algum. Foi só na morte que encontrei meu verdadeiro nome: Lunna.

Nossa tribo era composta de duas ou quatro famílias, não estou bem certa disso — o tempo confunde os números e borra os rostos — vagávamos em busca de novas terras, porque o homem branco nunca tinha terras o suficiente! Era como se não restasse chão algum em que pudéssemos parar. Andávamos sempre, seguindo adiante sem saber sequer para onde.

Hoje, quando ouço alguém dizendo “bons tempos aqueles”, preciso me segurar para não voar no pescoço do infeliz. Nunca houve essa besteira de “bons tempos”, não que eu tenha visto e acredite, eu vi muitos deles. Os “tempos” são sempre difíceis, todos eles!

Por onde quer que passássemos, nossa presença era incômoda. Lembro de ir a uma feira com meu pai e de lá sairmos enxotados; arremessavam coisas em nós; perguntei a ele o porquê de tanto ódio e ele disse:

“Esta é uma resposta que nem mesmo elas tem, Wenona, está no sangue...”

Pouco tempo depois, pude constatar que ele estava certo... Numa dada noite o sangue delas ferveu e o ódio tomou grandes proporções:

Acordamos em meio às chamas. Os homens tentavam inutilmente conter o fogo, enquanto as mulheres protegiam as crianças. Os jovens salvavam o que dava. Lembro de minha mãe dizendo:

”Wenona, tá vendo aquela lua? Ela vai te proteger enquanto o sol não vem. Agora corra! E só pare quando teus pés sangrarem. Não precisa chorar, sangrar é bom...”

E secando as próprias lágrimas, me entregou uma pequena trouxa de pano com tudo que havia conseguido salvar; um “tudo” que era quase nada...
“Agora vai: que Magena te proteja”
.


Eu corri, enquanto o fogo foi ficando para trás, pequenas labaredas dançando na noite escura. Era até bonito de se ver:

As chamas vermelhas, rodopiantes, iluminadas pela lua.
O vento soprava os lamentos, como uma canção tocada ao longe.
Em minha inocência de menina aquilo pareceu mais belo do que deveria.


Meus pés demoraram muito a sangrar e quando finalmente parei, já não via mais o fogo, já não havia mais a lua, não havia mais nada: A noite partiu, sem deixar sequer rastro da vida que tinha.

Foi um ensaio da morte, mal sabia eu que o grande show estava longe de começar...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Carta aos Breves

Sabe, pensei em milhares de formas para começar a escrever essa carta, mas todas elas me desagradaram gradativamente mais. Fui desde o clássico “Querida Alice” até algo mais rebuscado, talvez alguma frase profunda ou com um quê poético. Entretanto, esse tipo de reflexão serve-me apenas como desgaste. Sempre que afundo em idéias por mais que alguns segundos, invariavelmente elas apontam para você, contando as milhas e centímetros incontáveis que nos separam. Consegue imaginar que tormento me é não poder ter como companheiros nem mesmo os meus pensamentos? Houvesse tortura terrena similar, tê-lo-ia como carícia frente ao que sofro. Pudesse ter meu corpo dilacerado, o preferiria em troca de paz à minha mente.

Tão aflitivo quanto as lembranças que me corroem a sanidade é o esforço necessário para fazer correr a tinta sobre o papel. Um gesto simples, delicado, por tantas vezes repetido, custa-me uma concentração quase impossível de reunir. Escrever sempre foi parte de mim, e agora me é extremamente angustiante. Tente imaginar algo que lhe é querido e familiar, que subitamente lhe é extirpado à força, qual faca a cortar a carne – talvez consiga imaginar um mínimo a respeito da falta que me faz dedicar-me à minha arte.

Enquanto partes do que reconhecia como eu, se destorcem e deixam de existir, luto uma guerra particular a fim de manter o que resta de minha identidade. Mortos não têm personalidades, são apenas um conjunto de pecados e angústias que ainda os prendem junto aos breves. Não temos rosto, não temos corpo. Somos emoções emolduradas em um suspiro final, um alento da morte. Vejo, por este local, pobres almas que simplesmente se esqueceram o motivo de seus torpes estados de existência, restando-lhes apenas vagar e gemer sofregamente, aguardando o momento em que serão libertados deste eterno tormento. Que castigo sem igual! Nem mesmo caminhar cego em vales desconhecidos e perigosos se compara a encarar a virtual eternidade sem mesmo lembrar-se de quem é.

Mesmo aqueles que, há incontáveis, anos ainda retêm o pouco que lhes resta de seus traços pessoais, resguardando-se em sua fortaleza interior, ainda têm de lutar constantemente contra a cáustica loucura, que apodera a cada um de nós e nos enreda em suas malhas inexpugnáveis. Muitos daqueles que pouco entendem sobre seu novo estado decaem totalmente na espiral da insanidade, e em pouco tempo já estão combatendo o esquecimento com a loucura, pois ela é tudo que lhes restou. Tal passagem me lembrou os ditos de alguns dos mais desesperados – ou talvez ousados, ingênuos ou até mesmo iluminados – entre nós, que proferem que tal psicose post mortem, caso tomada firmemente como parte integrante e fundamental do âmago do ser, pode ajudar a combater a total obliteração da identidade, por também fazer parte dela. Particularmente, prefiro manter-me, enquanto é possível, longe dos caminhos da loucura, pois sei que enquanto uma de suas frias mãos nos abraça, a outra nos apunhala pelas costas. Tal tipo de auxílio ainda me dou ao luxo de dispensar, mas fico a ponderar por mais quanto tempo o serei capaz de fazer.

Oh, minha querida, subsisto em meu inferno particular, pagando em dor até mesmo por simples pensamentos, e me vejo à margem dos horrores da loucura, do oblívio ou até mesmo da destruição – pois ainda somos capazes de nos ferir através de um exercício da vontade (muito menos dificultoso do que tentar escrever-lhe esta carta ou tocar sua lívida face em noites sem lua), que muitos acabam praticando como válvula de escape aos seus crescentes impulsos violentos, que são acentuados até a beira da irracionalidade neste local.

Mesmo conhecendo as conseqüências, daria tudo que resta de mim por um último de seus suaves beijos, podendo assim decair à pior das torturas com a certeza de que minha vigília além do túmulo não foi em vão, mesmo sabendo que tal certeza rapidamente se tornará apenas poeira no vento. Quero apenas um fim para tudo isso, e cada vez mais não importo com qual seja ele.

Bondosos senhores do destino, correspondam ao pouquíssimo que me resta de esperança e leve estas breves palavras à minha amada, junto ao meu alerta para que não carregue nenhum peso que ate sua alma ao mundo dos breves quando tiver de deitar-se ao eterno sono, pois nada me feriria tanto quanto vê-la neste mesmo abismo que eu.

Caso esta carta chegue de alguma forma ao seu destino, de fato alimentando os resquícios de minha invocada esperança, rogarei escrever-lhe outras, talvez portando menos aflição e mais afeição. Nunca minha fé em milagres foi tão grande, mesmo em meio a esse lugar negro e sem vida. Não perca também a sua.


Do seu amado,

Gregory

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Entrevista #1: Scatha

Foto: divulgação ( da esquerda pra direita: Paula Leão; Cíntia Ventania; Angélica Burns; Cynthia Tsai Yuen e Júlia Pombo)


Por Anne Caroline Quiangala
Revisão: Tyr Quentalë


Scatha é uma banda feminina de Thrash Metal, formada no Rio de Janeiro. A banda surgiu em meados de 2005, quando as integrantes tinham por volta de quinze anos. Da formação original constam Júlia Pombo nas guitarras, Cíntia Ventania no baixo e Cynthia Tsai Yuen na bateria. Com a saída da vocalista original, Rebecca, a banda passa a ter Angélica Burns nos vocais e, imediatamente, lançam no fim de 2007 a primeira demo “Keep Thrashing” que já abriu caminho ao receber destaque na revista Roadie Crew, além da indicação para representar o Brasil no festival europeu ‘Wacken open Air’ (participando do Wacken Battle) .

[Brumas Negras] Olá, vocês poderiam dar uma breve apresentação da banda, história, experiência e estilo?

[Cíntia Ventania] O projeto se concretizou a partir do momento que eu conheci Julia Pombo por intermédio da internet. Ela tinha apenas 14 anos quando a conheci e eu aos meus 20, fiquei impressionada com o potencial de uma garotinha que mandava riffs e tinha uma pegada que nunca tinha visto antes... A partir daí o “sonho” de banda feminina de thrash metal deslanchou... Eu e Julia caímos de cabeça na banda, e depois de muitos testes com bateristas, vocalistas e algumas guitarristas, Paula Leão entrou na banda na segunda guitarra e Rebecca Schwab veio para os vocais. Começamos então tocar mais covers e cair dentro de composições. Eu já tinha uma pancada de letras e idéias, Julia estava sempre criando riffs e bases e, em agosto de 2005, já com a formação completa, fizemos nosso primeiro show no Garage. Apartir daí foram só ensaios, gravação, criação, shows por vários lugares do RJ e interior de SP.
E cada vez mais queríamos mais... Em janeiro de 2007 a vocalista Rebecca Schwab saiu da banda e Angélica Burns entrou dando mais fúria ao nosso som com seu vocal gutural agressivo. Em agosto desse mesmo ano gravamos nossa demo com cinco músicas autorais. Nossas maiores influências são as clássicas bandas de Thrash Metal, Megadeth, Pantera, Slayer, Testament, Exodus, Metallica, dentre muitas outras. Em julho de 2008 a guitarrista Paula Leão se desligou da banda por motivos pessoais.
Hoje em dia Scatha consta com Julia Pombo na guitarra, Cíntia Ventania no baixo, Cynthia Tsai Yuen na batera e Angélica Burns no vocal.

[Brumas Negras] A demo Keep Thrashing tem uma qualidade de gravação incrível, o que é interessante, já que muitas bandas do estilo, em seu primeiro trabalho, optam por uma gravação rude, como que utilizando dos recursos dos anos 80 com o intuito de preservar a cultura da época, assim como a vestimenta e toda a parafernália old school. Como vocês veem esse movimento oitentista hoje em dia?

[C.V] Bem, creio que isso seja uma opinião pessoal... Eu simplesmente gosto de gravações boas e audíveis... Queríamos fazer o melhor possível para mostrar nosso trabalho. Quanto ao movimento oitentista, eu apoio totalmente quem curte o Thrash e todo movimento metal que rolou na época... Mas os tempos são outros, inovar também é preciso, e qualidade sonora tem que rolar em primeiro lugar no trabalho de qualquer banda ou artista. – Temos que aproveitar que hoje em dia é muito mais fácil sem ter que gastar muito... Antigamente as demos tinham qualidade mais baixa pelo custo da gravação em estúdios profissionais. Quanto à vestimenta... bem, isso cada um sabe o que usa... Eu pessoalmente me amarro no cinto de balas! (rs)

[Brumas Negras] A Scatha traz muito da sonoridade da época, aquela pegada speed do Metallica em 83 mesclada às passagens crossover, apesar de não seguir a linha de letras com críticas diretas à sociedade. Existe uma tendência de a temática sair do universo interior (se é que podemos ver dessa maneira) para o exterior?

[C.V] Bem, basicamente tentamos expor a raiva e fúria tanto nos riffs quanto nas letras e linha de voz. As letras são totalmente focadas em críticas à sociedade, mas de forma não muito explícita... Mas quanto à temática, varia muito. Algumas letras são situações do cotidiano, outras são revoltas que se tem por algum mal que a sociedade trás às pessoas, ou problemas de terceiros que viram uma crítica.

[Brumas Negras] Como é pertencer a uma banda feminina que se destaca, sobretudo pela qualidade, nesse gênero? Qual é a reação do público e como vocês esperam serem vistas na cena carioca e mesmo brasileira?

[C.V] Existem pontos e pontos...
Os positivos são que ninguém espera uma banda como a nossa. Muitas pessoas vão aos eventos que tocamos só pra ver qual é... Se somos um bando de picaretas fazendo pose, ou se tocamos mesmo... Após os shows insandecidos com a presença de palco e agressividade do som, muita gente vem falar conosco... Várias bandas masculinas tentam fazer a nossa caveira por inveja ou algo do tipo, mas isso não atrapalha nosso trabalho, só ajuda a termos mais raiva! (rs)

[Brumas Negras] É interessante ressaltar o quanto vocês aliaram o peso à feminilidade, conceitos que comumente são vistos como incompatíveis de forma que soa bastante espontânea. Angélica traz um vocal mais voltado para o Death/Black têm uma brutalidade sem deixar de transparecer que são mesmo garotas. Como é isso?

[C.V] Cara... Não sei... Talvez porquê simplesmente somos mulheres e transparece isso. Não tentamos agir como homem, ou tocar como homem... Somos simplesmente mulheres e fazemos nosso melhor.

[Brumas Negras] Já faz algum tempo que a figura feminina em uma banda de ‘rock’ de uma vertente ‘não convencional’ como Thrash metal está correlacionada ao marketing visual, entretanto, desde meados dos anos 80 e 90, várias bandas vêm posicionando contra essa imagem. Vocês têm algum posicionamento a respeito disso?

[C.V] Não. Simplesmente somos 4 garotas que curtem tocar e amamos thrash metal. Claro que tem um apelo visual... Mas creio que não faça diferença no trabalho, e o que nos importa é o trabalho bem feito.

[Brumas Negras] Devido ao poder matador dos riffs de guitarra e baixo, da bateria seca e correta e ao vocal destruidor, vocês passam a ser uma referência positiva para as gurias do metal e até mesmo para a cena nacional. Vocês conseguem se ver nessas proporções? Já almejavam essa posição desde o início?

[C.V] Não tínhamos idéia que íamos ser influência, mas depois de um tempo vimos algumas bandas surgindo e vindo falar conosco... Eu simplesmente acho isso perfeito... Nada melhor do que ser boa influência para uma geração futura. Tirar um pouco desse estigma que mulher não sabe tocar ou não sabe fazer metal.

[Brumas Negras] Vivendo em um país cuja cultura popular é de músicas comerciais como axé e funk, o que levou ao heavy metal e a decidirem ter uma banda? Tiveram referências femininas ou foi totalmente assimilado a partir de influências masculinas?

[C.V] Pura e simplesmente por gostarmos de Heavy Metal, por isso decidimos ter a banda. Quanto a referencias, cada uma integrante tem uma, as minhas são quase todas masculinas, pois só vim conhecer mais bandas de Metal com mulheres na formação depois de comparações, mas nunca me espelhei em nenhuma mulher já famosa do metal.

[Brumas Negras] Existe algum outro campo da arte que influencia a banda?

[C.V] Não, só a música mesmo.

[Brumas Negras] Fale um pouco sobre o processo de composição e como as tendências individuais se mesclam.

[C.V] ... Isso seria um tanto complicado de explicar. Até agora quem faz as composições são Cíntia Ventania e Julia Pombo. Cíntia faz 99.9% das letras, Julia faz 85% dos riffs, baterias e afins. No final somente os gostos das 2 que se misturam nas composições.

[Brumas Negras] Como surgiu o convite para entrar na disputa do Wacken Battle?

[C.V] Na verdade na inscrição de 2008 mandamos nossa demo “Keep Thrashing!” mas não foi selecionada. Este ano nem chegamos a enviar o material, mas creio que eles devem ter feito uma pré-seleção das bandas que “sobraram” do ano passado e entramos!

[Brumas Negras] A demo “Keep Trashing” tem uma qualidade de gravação excelente, ainda assim vocês a disponibilizaram na internet gratuitamente. Um grande problema da indústria fonográfica é o ‘ vazamento’ de CD antes do lançamento, além da pirataria. Vocês pretendem disponibilizar, também faixas de álbuns, ou se trata de um marketing eficiente, por enquanto?

[C.V] Bem, nós temos nossa demo prensada que vendemos em nossos shows, e temos uma grande procura pelo material. Inicialmente colocamos algumas músicas disponíveis pro pessoal poder checar nosso som e se gostam, normalmente encomendam a demo conosco. Resolvemos disponibilizar a demo pra não vetar o acesso ao trabalho, o mais importante é divulgarmos o som pra galera nos conhecer, mas depois do album gravado ainda disponibilizaremos grande parte do novo material.

[Brumas Negras] Comentem as faixas da demo:

Faixa 1 - The Unknown Man

“Homem desconhecido” fala sobre uma pessoa que vive uma farsa com ela mesma, e até mesmo os mais íntimos não a conhecem muito bem, por ela viver num mundo paralelo e não mostrar quem é ao mundo.

Faixa 2 - No Mercy

A letra diz respeito à crítica sem piedade dos amigos de uma pessoa que, com toda sua inveja e planos interesseiros, acaba sendo excluída por eles.

Faixa 3 - Odd Being… Off Conception

A tradução mais próxima é: “Ser estranho…fora de concepção”.
É bem complexo explicar o ponto de vista dessa letra, mas se tratam de pessoas que são totalmente fora da realidade da sociedade, mas vivem por trás dos “panos” manipulando as pessoas comuns “the pairs”.
Então tudo se passa entre o mundo dos estranhos e comuns. Odd X Pairs.

Faixa 4 - Movido Pela Raiva

Ela é a mais explícita de todas, ao mostrar uma das “realidades” do brasileiro: ter que acordar todos os dias para trabalhar em um ambiente hostil e não ganhar o suficiente para se sustentar, o dia-a-dia de ter que se foder pra sobreviver, e que só continua na rotina movido pela raiva. Uma realidade batida por aqui.

Faixa 5 - Own War

“Guerra própria” também fala por si. Uma pessoa e seus conflitos internos.




Ouça a demo da Scatha na internet: www.myspace.com/scathaband
Contato: bandascatha@gmail.com

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Espreitador Onírico


Willey não sabia onde a coisa – ou melhor, criatura – estava, mas sentia-a sufocantemente próxima. Pensou, quem sabe, pela vigésima vez, que alguém talvez pudesse socorrê-lo, mas sua idéia logo caiu por terra ao ver a madrugada nebulosa que abraçava sua choupana rústica, que há poucos meses chamava de lar. Agora, era como se fosse chamá-la de jazigo a qualquer instante.

É claro, uma pessoa com problemas afetivos e sociais não poderia desejar outra coisa que não a calmaria bucólica do campo, mas Willey sentia uma necessidade gritante de ter ao menos um mínimo contato humano que fosse. Na verdade, sabe-se lá, alguém que o fizesse sentir-se protegido, que pudesse lhe mostrar que as pessoas – incluindo ele – tivessem algum valor. Podia parecer exagero ou loucura, mas ele sentia como se um simples abraço pudesse lhe salvar de sua situação degradante.

Tábuas velhas rangeram sob as solas de suas botas, ainda sujas de terra. Ele respirava no ritmo acelerado de suas batidas cardíacas, aproximando-se cada vez mais de um colapso. Tateou sobre o armário velho, empoeirado e repleto de armadilhas aracnídeas para insetos, até que seus dedos tocaram no metal gélido da arma. Ela era obviamente muito mais apropriada a uma caça do que para qualquer tipo de defesa pessoal, mas era o melhor que ele podia dispor naquele momento. Preparou-a para disparar, e cada estalido metálico lhe fazia palpitar ainda mais o coração, pois pareciam ruidosos como tratores apesar de suaves como uma agulha.

A velha espingarda parecia pesada como a cruz, e com certeza para Willey carregava a mesma ressonância de cruel inevitabilidade da dor e da morte. A coisa estava por lá, espreitando nas sombras, como um grande felino prestes a dar o bote. Os galhos nus de uma macieira arranhavam a janela da sala, no mesmo local onde a coisa estivera observando-o momentos atrás. O rancheiro estava com os sentidos todos embotados, e sua cabeça parecia pressionada pelo exterior, como num mergulho profundo. Um barulho – folhas secas trituradas ao pisar – se pronunciou de uma janela lateral, e o cano da arma logo voltou-se para tal localidade. O coração agora batendo na ponta do indicador direito, o único homem num raio de vários e vários quilômetros aproximou-se a passos lentos de onde viera o ruído, equilibrando-se forçosamente a cada passo.

Claro, não havia nada por lá. Mas houvera, Willey poderia jurar por sua vida. Passou até os ombros pela janela agora aberta e inclinou-se para examinar a grama logo abaixo, mas o negrume da noite enevoada impedia um exame mais minucioso. Entretanto, mesmo não sabendo se a escuridão enganava sua visão, Willey deu por quase certo que alguém por ali passara, e há pouco tempo. Voltou novamente o corpo para dentro e cerrou firmemente a janela, seguindo agora a possível trajetória da criatura, mas pelo lado interno da casa.

A busca do solitário rancheiro lhe levou a fazer um exame superficial pelas janelas do corredor, da sala de jantar e da cozinha, mas obtendo sempre o mesmo vago resultado. Cada vez que se aproximava mais de uma confrontação direta com o ser, Willey se sentia ainda mais apavorado. Suas pernas tremiam, sua respiração estava pesada, ofegante e irregular, e uma vontade de chorar crescia em seu interior. Pior do que um combate físico contra algo desconhecido – que Willey notara como tendo uma vaga forma humanóide, mas de um aspecto totalmente diferente de tudo que era natural e com certeza saído de algum pesadelo febril – era essa sensação de apreensão temerosa, de antecipação de um perigo iminente. Era como nadar cego e sangrando num oceano povoado de tubarões. De certa forma, aquele local era realmente isolado como uma ilha bem no meio do oceano – um ótimo lugar para ser devorado pelos tubarões.

Repentinamente, uma forte batida se fez ouvir na porta da fronte, localizada na sala. Willey respirava pela boca, a face mergulhada em suor frio e tenso. No curto caminho de volta ao cômodo mais amplo da casa, o solitário homem imaginou se iria para o céu ou para o inferno, caso morresse. Ao correr por seu passado, soube que era mais provável que fosse a segunda opção, se realmente existisse essa coisa de vida após a morte. De qualquer forma, ao menos estaria acompanhado por uma hoste de milhões de almas. Sim, teria todo o seu calor humano.

Após o girar rápido da chave, Willey abriu a porta de modo abrupto, já esperando deparar-se cara-a-cara com seu espreitador noturno. Entretanto, não havia nada por lá. Nada, nada além da grama seca e da terra úmida, nada além de algumas árvores quase sem folhas e a brisa outonal que corria pelos seus galhos expostos. Era impossível, ele deveria estar lá. De súbito, Willey olhou para os lados e viu vários e vários seres, mas não eram do mesmo tipo que viera lhe visitar antes.

Estavam lhe chamando. Era a hoste, cortejando o solitário e amargurado homem armado com sua espingarda trêmula. E então, ele entendeu. Deveria partir junto a eles, e só havia uma forma.

E, na verdade, aquilo era bem mais pesado que uma cruz.

sábado, 21 de março de 2009

Derradeiro Fim

Uma guerra havia se iniciado. À medida que as tropas avançavam, corpos se espalhavam e novas vítimas eram acrescidas à lista de extermínio. A matança alcançava os senhores da guerra, enfraquecendo as alianças perante ameaças fundadas em chantagens familiares.
– Covardes!!! – Vociferam ao redor deles – Estamos em meio a uma guerra e vocês ousam nos abandonar?
– Seu mísero clã não conseguirá sobreviver sem a nossa ajuda. Iremos caçá-los e pendurá-los como nacos de carnes humanas para saciarem a fome dos nossos.
Punhos se fechavam com aqueles dizeres, mas o cansaço das intrigas e disputas pelo poder sobrepujava os ânimos exaltados de seus corações.
– Não negamos nossa essência, muito menos nosso Pai. Não deixamos de lado a fome que nos consome, nem mesmo a besta existente dentro de nós. Apenas não concordamos com a guerra que atinge nossos iguais. – A palavra era tomada em defesa dos que estavam para desertar.
– Suas mentes se perderam, quando os humanos ficaram escassos. Dizimam seus irmãos temendo que sejam os próximos. Deixaram de serem senhores para se tornarem escravos da guerra que disseminaram. Há muito não pertencemos a este lar. – A palavra final era dada junto à retirada do defensor e seus aliados.
A saída deles não era aceita e seus iguais cuspiam sangue aos pés do grupo exilado em completo desprezo. Tratavam-nos como, “Seguidores de cães”, “Traidores”, “Amantes de homens”, e suas palavras ganhavam força ao pronunciar de uma única maldição.
– Eles nos caçarão como um dia caçamos aqueles que tínhamos como inimigos. Tanto unidos quanto separados, sucumbiremos às mãos de nossos antigos irmãos se não invertermos o processo.
– Trevor... – preocupou-se um deles com aquela profecia.
– Separem-se e permaneçam vivos. – Trevor finalizou o assunto, evitando que os temores vencessem seus aliados ao que se separavam.
Não havia mais tempo para falas onde cada um seguiu para lados diferentes, a caçada finalmente tinha seu início com as ordens soberanas.
– Cacem-nos e não os deixem fugir da guerra.
O som da corrida e dos comandos era certeiro, a cada encontro o cheiro do sangue aumentava. Corpos dilacerados ganhavam espaço ao ritmar dos corações e os olhares mostravam aqueles que venciam em cada ocasião.
– Não fugirão da guerra! – Alguém pronunciava às vezes débil, às vezes fervoroso demais. Mas os atos agiam mais que as falas e o avanço não diminuíam a determinação de ambos os lados.
Olhares que ganhavam o asco, olhares que ganhavam a fúria. Garras que se manchavam de sangue e clamores silenciados às gargantas. Os corpos ficavam cansados demais.
Arfares, pesares e a noite avançava rápida demais. Os dias se prolongavam, os meses passavam, os séculos chegavam.
O terror daquela guerra cravava aos corpos deixando suas marcas. Não havia mais risos, sequer comemorações, quando em passos pesados retornavam a casa.
Chamas se espalhavam pelos cantos, consumindo os corpos carbonizados e em frangalhos, revirando o estômago daqueles que avançavam.
– O que aconteceu aqui? – Murmurou aquela que um dia se preocupou com uma profecia e aos poucos fora reconhecendo seus irmãos.
Não apenas os irmãos que renegara, mas pouco a pouco encontrava os irmãos exilados. Aliados em tentar reverter o processo de uma guerra insana que se arrastou por séculos à sua carcaça e as de outrem, enquanto seus sentidos foram despertados por rosnares.
Coração fervilhando e cega à razão, seus passos avançaram, deparando-se com seus poucos aliados cercados. Não havia tempo para sorrir, a não ser agir. Saltava dentro do cerco fechado por antigos inimigos de sua espécie.
– Afastem-se, ou não temerei em enfrentá-los juntos aos meus irmãos. – Proferiu a jovem raivosa e percebera aos olhos daqueles que enfrentaria que eles não a observavam.
O calafrio percorria ao corpo, ao que seus instintos lhe pediam para olhar o que não vira e seus olhos lamentaram ao ver ao chão sem vida aquele que os liderara.
Frio e com o coração arrancado, tinha seu corpo estraçalhado e as lembranças de sonhos morriam em suas crenças ao que a guerra alcançara não apenas ela, mas aqueles que chamara de aliados.
Garras cravadas às costas, presas ao corpo, ela avançava mais uma vez cega contra aqueles que amara. Não havia paz, não podia fugir da guerra. A profecia se realizava não às mãos dos irmãos que os viram como renegados, mas às mãos dos que se afastaram.
Um a um eles caíram. Senhores da guerra, senhores da paz. Com o corpo ferido e quase não agüentando mais, ela chorou, suspirou e observou os olhares que ali presenciaram mais do que deviam presenciar.
– Basta! – Pranteou perante eles, sentindo o próprio golpe cravando ao peito. O corpo caía inerte aos poucos, ausente de seu coração, dando um basta a toda guerra e ao fim de toda uma era.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A Fábula dos Pesadelos

Johann Heinrich Füssli
" Pesadelo
"

"Once I had a dream
And this is it"

(Nightwish - Dark chest of wonders in "Once")



Er' uma vez queda final em tristes relvas
Gente comendo carne e vomitando trevas
Expectros tão doentes de temáticas falhas
Com' uma modona triste, das vis batalhas

Er' uma vez medo preso e proibido ruir
Bestas são portais de o Quimérico fluir
Medo escabroso palpitando fundo o peito
Fio de prata que avista o mortal em seu leito

Er' uma vez Quiméras tão horrendas, tão alegóricas
Sonhar de dias ruins, de obras categóricas
Er' uma vez um Amor tão próximo, tão esgotado

Ao que se soltam os dedos, quão arrebatado
Er' uma vez o amanhecer mau que não reluz
Tempestuoso Mar das Sombras - nenhuma Luz!

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Batalhas – Segundo Ato

Outra cena.
Outro lugar.
As palavras se propagavam de forma baixa em sinais de preocupação.
Ponderações feitas.
Prós e contras discutidos.
Então eles entram.
Quatro pontos cardeais.
Quatro elementos representados.
Mas a terra não tinha seu representante legítimo e a discórdia fora disseminada.
Conversas tornam-se brados.
Brados tornam-se ergueres de armas.
Dedos acusatórios erigidos.
Explosões que se sucediam.
E o que antes observava, se expandiu em violência descontrolada.
Descontrole que tomou controle de rédeas puxadas.
Asfixiou sem dó nem compaixão.
Pouco antes de extinção completa e sádica, o afrouxar das rédeas fora constatado.
Quatro ventos em um corpo só.
Quatro que fazem parte de um que já fizera parte de quatro.
Quatro anjos.
Quatro elementos.
Quatro irmãos que se encontram separados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Batalhas - Primeiro Ato.

Estavam eles, frente a frente.
Os olhares flamejantes de ódio, decepção.
As mentes pensando nos locais que deviam ser atingidos.
Não havia lanças ou espadas.
Sequer cavalarias e batalhões.
Ali a maior arma eram as palavras e uma a uma foram vociferadas.
Acusações que mostravam o ponto de vista.
Ângulos distorcidos de um prisma.
Golpes dados, feridas abertas e as peças se moviam.
Rangeres de dentes, corpo tremendo naquela que iniciara a guerra.
Lágrimas amargas, silêncio aos lábios, pois sabia que aquela batalha estava vencida de forma estranha.
Do outro lado, coração amargurado, um tanto quanto decepcionado, mas em uma pose mais austera.
Quem havia vencido?
Ninguém sabe.
Mas aqueles brados reverberam, tomam formas, ganham garras.
O veneno foi espalhado.
Muitos, atingidos.
E mesmo exausta no campo de batalha, ela suspira e murmura:
- Ainda chegará o dia, mas não hoje, não agora.
O veneno se espalha e apenas no futuro, certos vociferares de cautela, serão relembrados.
Não por ela, mas por quem foi atingido.