quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cicatriz

Por toda a minha vida, fui um profundo cético. Desde alguns eventos desagradáveis ainda na tenra infância, tenho me apegado a um pragmatismo quase fanático, talvez como uma forma de defesa contra coisas que me abalariam a sanidade se realmente fossem reais. Talvez isso me torne o ser humano mais vazio ou hipócrita que a grande maioria das pessoas poderia conhecer, mas elas jamais entenderiam minhas motivações mais fundamentais. Quando se tem uma ferida enterrada em sua alma, é natural que se tente isolá-la de todas as formas, jamais se aproximando dela o mínimo que seja, tanto em intenções quanto em pensamentos. Entretanto, para alguns, essa ferida torna-se uma eterna chaga, sempre a verter agonia escarlate, criando o jardim perfeito para que floresça a loucura. Para estes, nos quais me incluo, restam apenas os caminhos da decadência ou o eterno combate a fim de suturar tal ulceração. Nesta batalha interior, tomei como armas o raciocínio lógico e meu mencionado ceticismo fanático, os salvadores de minha tênue sanidade.

Desde a juventude, dediquei todos os meus esforços a fim de obter um sólido conhecimento acadêmico, através do qual provaria irreais todo tipo tal de fantasia paranormal, comprovando, sobretudo a mim mesmo, o quão tolo era meu sofrimento pessoal. E assim, por anos, tentei enganar-me. Fui insensível para com minha própria pessoa, tentando enterrar-me sob camadas de retórica aplicada e estudo avançado. Quanto mais longe eu ia, mais difícil me era conseguir olhar para o início de toda aquela trajetória. Aos poucos, acabei por quase convencer-me de que minha macabra experiência não passara de um fruto de minha febril imaginação infantil, tal era meu grau de rejeição e racionalização. Mal suspeitava que esta era apenas a semente de um mal muito maior, regada pelo meu auto-infligido martírio interior até seu desabrochar.

Meus antigos terrores se utilizaram dos insondáveis portões do mundo onírico para retornarem, vestidos em noite escura. Abateram-se sobre minha doce amada, maculando seus frágeis sonhos, tal era seu grau de sordidez. Quando ela acordou, aos gritos mais estridentes, um antigo medo cravou-se em meu peito, talvez fruto de minhas memórias quase inconscientes. Tão paralisante era seu choque que ela nenhuma palavra de explicação pôde me dirigir, limitando-se a fitar com olhos sem foco algum canto escuro qualquer, trêmula. Apenas quando já se findava a hora mais fria da madrugada que esboçou alguma reação, embora eu tivesse por preferência que ela se mantivesse da mesma forma até o fim de seus dias a tê-lo feito. Com o sangue a congelar nas veias, ouvi de seus lábios os mesmos dizeres que os meus já haviam, há tanto anos, proferido: “Não desejo conhecer verdade alguma. Deixem-me em paz.” Dito isso, jogou-se a um intenso pranto desesperado.

Oh, quantos dias febris se seguiram depois. Minha amada era visitada sempre que as trevas se abatiam sobre o céu, não havendo nem mesmo a necessidade que conciliasse o sono. Segundo seus relatos, eles sempre lhe revelavam coisas terríveis, instruindo-a com sua catequese profana. Procurei, através de todos os meios que me eram acessíveis, uma resposta para aqueles acontecimentos tão repentinos, que insistia em chamar de surtos psicóticos, mesmo não havendo razão nenhuma aparente para que eles surgissem. Despendi toda minha pequena fortuna em médicos e especialistas, obtendo sempre a mesma falta de resultados.

A capacidade de repousar tranquilamente tornou-se inatingível, pois meus pensamentos convergiam sempre para minha nobre amada e sua situação deplorável, atormentada por criaturas além da compreensão. Minha antiga cicatriz voltava a afligir-me, corroendo-me novamente a razão. Mesmo que meu interior gritasse a verdade, negava-me em aceitá-la terminantemente. Meu orgulho de homem da lógica fora ferido, sobretudo por se tratar de algo tão próximo, tão íntimo, mas ao mesmo tempo tão distante de toda explicação humana. Ah, que torturante me era contemplar os olhos encovados de minha mulher, privada de toda paz de espírito, bombardeada por segredos tão escusos que ela não ousava sequer sussurrá-los sob o véu da inominada escuridão.

O arrastar do tempo, junto com a falta de respostas, fazia-me delirar. Cada novo grito de terror me era uma nova facada no coração. E como meu interior já sangrava! Começava a me sentir pesaroso, pois sabia que todo aquele tormento era destinado e originado por mim. Aos poucos, meu amor por minha noiva foi transformando-se em culpa, e eu já sofria mais que a própria, mergulhado em meus terrores pessoais. Aquilo era tão absurdo e insuportável que parecia simplesmente não ser real. De fato, comecei a desejar que realmente não o fosse, e esse desejo acabou por motivar o pior de meus pecados.

Com lágrimas nos olhos, disparei sete vezes contra minha pobre amada, dando por certo que livrava a nós dois de um peso terrível. Seu sangue rubro manchava os alvos lençóis que lhe serviram de manto de morte, assim como a loucura grassava por minha psique em cheque. Agora, não haveria nada mais que a culpa para desafiar minha razão, e rogo para que eles permitam que assim seja, pois nenhum homem suporta ter seus pilares destruídos de forma tão súbita e sem piedade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário