Desde um terrível acidente, há alguns anos, desenvolvi uma espécie de capacidade extraordinária e sobre-humana, da qual pouquíssimo posso discorrer sobre suas causas ou origens. Consiste na habilidade de enxergar no olhar de cada pessoa quanto tempo lhe resta nesse mundo desprezível, numa espécie de contagem regressiva altamente subjetiva e irrevogável. Adquiri-a após um acontecimento que me pôs de frente ao abismo da morte, fazendo-me olhar por tanto tempo para seu fosso negro que agora não posso mais livrar minha visão de sua mácula. Ainda sinto seu hálito em minha face, que vem sempre carregado com uma amarga risada que expressa a talvez mais pura ironia que é nossa existência terrena. Se todos pudessem contemplar as provações do além, certamente mudariam em muito seu modo de agir e existir.
O que posso dizer de mais concreto a respeito de meu dom macabro é que ele certamente é capaz de abalar a sanidade de qualquer pessoa. Muitos talvez abandonar-se-iam ao mais puro desespero, tecendo prantos de prata intermináveis enquanto degustam amargamente seu niilismo particular na mais suja das sarjetas, enquanto outros se dedicariam a aliviar o sofrimento daqueles prestes a partir da melhor forma que lhes fosse possível, mesmo sem revelar a cruel verdade contida em seu olhar. Considero tais extremos uma inteira tolice, e certamente não faço as vezes nem de miserável nem de trágico herói. Mesmo um homem com o mais precioso dos poderes continua sendo um homem, e não seria diferente em meu caso. Não acredito na caridade pura de intenção nem na total falta de esperança, sobretudo por já ter presenciado pessoas que deram cabo dos atos mais nobres de suas vidas pouco antes de seu ocaso.
Minha sina é contemplar todas as facetas da morte, das mais benevolentes às mais trágicas. Muitos enfermos a esperam de braços abertos, enquanto outras pessoas deixam cicatrizes no mundo com sua ausência. Depois desses anos todos, sinto o soprar da destruição sussurrar-me no ouvido e guiar-me até onde tocará mais uma alma com seus dedos gélidos e esquálidos, sendo o olhar apenas uma lúgubre confirmação do que meu instinto já previa. Pobres humanos, que não podem sentir as brumas da morte se aproximando! Quanto sonhos não já vi serem ceifados subitamente, sem a menor premeditação por parte de seus idealizadores, enquanto alguns poucos livram-se do pesadelo de suas vidas. Certamente, uma rotina assim tornou-me um homem melancólico e taciturno, um corvo negro em pele de gente. O contato social tornou-se extremamente angustiante para mim, como qualquer um com um mínimo de sensibilidade poderia concluir. Não se pode ver doçura no sorriso de um amigo quando se vê a morte em sua face. É triste e solitária minha sina, digna das mais homéricas tragédias gregas.
Nesse solitário caminho, cujo meio é cheio de fins, carrego o fado que acredito que caiba a mim. Sei que não há nada pior para os falecidos do que o total esquecimento, pois é da lembrança de suas vidas terrenas que eles são feitos, portanto cuido para que nenhuma alma parta no total esquecimento. Aquelas cuja memória não dispõe dos corações de seus entes queridos para descansar tornam-se meus mais exaustivos trabalhos. Uma simples cerimônia fúnebre não seria o suficiente, portanto, empenho-me em criar uma crônica a respeito da pobre vida do recém-falecido. Minha casa tornou uma biblioteca dos condenados, volumes e volumes de histórias com o mesmo fim. Não era esse o destino que eu sonhava em dar para minha veia artística, mas certamente a aquisição de meu peculiar dom mudou todo o prognóstico de minha vida.
Entretanto, o último caso fez-me deparar com algo inédito. Encontrei-a velando o corpo de alguém que lhe era muito querido, certamente uma alma que partira plena de amor e boas lembranças. Seus cabelos eram da cor da noite e seus olhos de esmeralda, sua pele alva e seu rosto delicado e angelical. A epítome da pureza, se é possível existir algo assim. Olhei em seus olhos e vi o tempo escorrer junto com suas lágrimas, cada vez mais perto de seu fim. Fui imediatamente arrebatado por sua beleza e ternura, algo que nunca antes havia me acontecido e que eu julgava impossível, dado meu estado de existência. Passei a acompanhá-la em seu luto, pela primeira vez temendo verdadeiramente pelo fim de alguém.
Os dias passavam-se morosamente, enquanto eu conhecia aquela doce jovem que atendia pelo nome de Alice. Amava-a como se poderia amar a um anjo, uma espécie de admiração temerosa, pois receava macular sua pureza. Invejei secretamente a própria morte, pois poderia tocá-la tão intimamente muito em breve. E assim, nesse meu querer platônico, esperei pelo fim que se aproximava inexoravelmente.
Oh, e que doce surpresa não tive ao descobrir que estava enganado! Salve as ironias amargas da extinção. Mal sabia eu, pobre tolo, que aqueles olhos cristalinos não eram capazes de refletir a mácula da morte, mas apenas a mais terna das compaixões. Eram como um espelho, no qual eu previ inconscientemente meu destino. E fora o por muito negado amor que me levara à morte. Pobre Alice, fadada a derramar amargas lágrimas, pois fora ela que, numa tentativa de suicídio após ler uma carta que nunca mais poderei descobrir do que se trata, selou meu fim. E é nesse segundo infinito, após evitar a queda daquela doce jovem, que toda a minha vida transcorre diante de meus olhos. Já posso até mesmo sentir o além se abrir diante de mim, seu portal de ébano margeado pelo asfalto do solo.
O que posso dizer de mais concreto a respeito de meu dom macabro é que ele certamente é capaz de abalar a sanidade de qualquer pessoa. Muitos talvez abandonar-se-iam ao mais puro desespero, tecendo prantos de prata intermináveis enquanto degustam amargamente seu niilismo particular na mais suja das sarjetas, enquanto outros se dedicariam a aliviar o sofrimento daqueles prestes a partir da melhor forma que lhes fosse possível, mesmo sem revelar a cruel verdade contida em seu olhar. Considero tais extremos uma inteira tolice, e certamente não faço as vezes nem de miserável nem de trágico herói. Mesmo um homem com o mais precioso dos poderes continua sendo um homem, e não seria diferente em meu caso. Não acredito na caridade pura de intenção nem na total falta de esperança, sobretudo por já ter presenciado pessoas que deram cabo dos atos mais nobres de suas vidas pouco antes de seu ocaso.
Minha sina é contemplar todas as facetas da morte, das mais benevolentes às mais trágicas. Muitos enfermos a esperam de braços abertos, enquanto outras pessoas deixam cicatrizes no mundo com sua ausência. Depois desses anos todos, sinto o soprar da destruição sussurrar-me no ouvido e guiar-me até onde tocará mais uma alma com seus dedos gélidos e esquálidos, sendo o olhar apenas uma lúgubre confirmação do que meu instinto já previa. Pobres humanos, que não podem sentir as brumas da morte se aproximando! Quanto sonhos não já vi serem ceifados subitamente, sem a menor premeditação por parte de seus idealizadores, enquanto alguns poucos livram-se do pesadelo de suas vidas. Certamente, uma rotina assim tornou-me um homem melancólico e taciturno, um corvo negro em pele de gente. O contato social tornou-se extremamente angustiante para mim, como qualquer um com um mínimo de sensibilidade poderia concluir. Não se pode ver doçura no sorriso de um amigo quando se vê a morte em sua face. É triste e solitária minha sina, digna das mais homéricas tragédias gregas.
Nesse solitário caminho, cujo meio é cheio de fins, carrego o fado que acredito que caiba a mim. Sei que não há nada pior para os falecidos do que o total esquecimento, pois é da lembrança de suas vidas terrenas que eles são feitos, portanto cuido para que nenhuma alma parta no total esquecimento. Aquelas cuja memória não dispõe dos corações de seus entes queridos para descansar tornam-se meus mais exaustivos trabalhos. Uma simples cerimônia fúnebre não seria o suficiente, portanto, empenho-me em criar uma crônica a respeito da pobre vida do recém-falecido. Minha casa tornou uma biblioteca dos condenados, volumes e volumes de histórias com o mesmo fim. Não era esse o destino que eu sonhava em dar para minha veia artística, mas certamente a aquisição de meu peculiar dom mudou todo o prognóstico de minha vida.
Entretanto, o último caso fez-me deparar com algo inédito. Encontrei-a velando o corpo de alguém que lhe era muito querido, certamente uma alma que partira plena de amor e boas lembranças. Seus cabelos eram da cor da noite e seus olhos de esmeralda, sua pele alva e seu rosto delicado e angelical. A epítome da pureza, se é possível existir algo assim. Olhei em seus olhos e vi o tempo escorrer junto com suas lágrimas, cada vez mais perto de seu fim. Fui imediatamente arrebatado por sua beleza e ternura, algo que nunca antes havia me acontecido e que eu julgava impossível, dado meu estado de existência. Passei a acompanhá-la em seu luto, pela primeira vez temendo verdadeiramente pelo fim de alguém.
Os dias passavam-se morosamente, enquanto eu conhecia aquela doce jovem que atendia pelo nome de Alice. Amava-a como se poderia amar a um anjo, uma espécie de admiração temerosa, pois receava macular sua pureza. Invejei secretamente a própria morte, pois poderia tocá-la tão intimamente muito em breve. E assim, nesse meu querer platônico, esperei pelo fim que se aproximava inexoravelmente.
Oh, e que doce surpresa não tive ao descobrir que estava enganado! Salve as ironias amargas da extinção. Mal sabia eu, pobre tolo, que aqueles olhos cristalinos não eram capazes de refletir a mácula da morte, mas apenas a mais terna das compaixões. Eram como um espelho, no qual eu previ inconscientemente meu destino. E fora o por muito negado amor que me levara à morte. Pobre Alice, fadada a derramar amargas lágrimas, pois fora ela que, numa tentativa de suicídio após ler uma carta que nunca mais poderei descobrir do que se trata, selou meu fim. E é nesse segundo infinito, após evitar a queda daquela doce jovem, que toda a minha vida transcorre diante de meus olhos. Já posso até mesmo sentir o além se abrir diante de mim, seu portal de ébano margeado pelo asfalto do solo.
Belo texto - em forma e conteúdo!
ResponderExcluirBem escrito. Cheio de referências (gosto disso) e com forte veia poética: "Nesse solitário caminho, cujo meio é cheio de fins, carrego o fardo que acredito que caiba a mim" Linda essa frase! Beleza que só a melancolia é capaz de construir. Parabéns!
Adoro sua atmosfera século XIX (que tem a ver com a escolha lexical e com as narrativas contemplativas, decadentistas até).É uma bela história, melancólica...como o título já faz presumir.Vejo uma gradação crescente na sua concisão e isso é ótimo! Confesso que imaginei que era intersessão com Alan Poe - uma "retalhação"!). Storyteller-boy!
ResponderExcluirSabe que, agora que comentou, notei o quão fortemente o Poe influencia na minha escrita. Enfim, obrigado Carol e Blasina :)
ResponderExcluirP.S.: Storyteller-boy e Storyteller-girl, isso parece até nomes de uma dupla de super-heróis, hehehe.
E não é?
ResponderExcluir"isso parece até nomes de uma dupla de super-heróis" - Tatatatãtatãaa - Sorry, não consigo resistir a uma onomatopéia!
ResponderExcluirAh, todo super-herói (ou dupla de) tem um jingle legal, então suas onomatopéias estão "liberadas" :P
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