terça-feira, 8 de setembro de 2009

Carta aos Breves

Sabe, pensei em milhares de formas para começar a escrever essa carta, mas todas elas me desagradaram gradativamente mais. Fui desde o clássico “Querida Alice” até algo mais rebuscado, talvez alguma frase profunda ou com um quê poético. Entretanto, esse tipo de reflexão serve-me apenas como desgaste. Sempre que afundo em idéias por mais que alguns segundos, invariavelmente elas apontam para você, contando as milhas e centímetros incontáveis que nos separam. Consegue imaginar que tormento me é não poder ter como companheiros nem mesmo os meus pensamentos? Houvesse tortura terrena similar, tê-lo-ia como carícia frente ao que sofro. Pudesse ter meu corpo dilacerado, o preferiria em troca de paz à minha mente.

Tão aflitivo quanto as lembranças que me corroem a sanidade é o esforço necessário para fazer correr a tinta sobre o papel. Um gesto simples, delicado, por tantas vezes repetido, custa-me uma concentração quase impossível de reunir. Escrever sempre foi parte de mim, e agora me é extremamente angustiante. Tente imaginar algo que lhe é querido e familiar, que subitamente lhe é extirpado à força, qual faca a cortar a carne – talvez consiga imaginar um mínimo a respeito da falta que me faz dedicar-me à minha arte.

Enquanto partes do que reconhecia como eu, se destorcem e deixam de existir, luto uma guerra particular a fim de manter o que resta de minha identidade. Mortos não têm personalidades, são apenas um conjunto de pecados e angústias que ainda os prendem junto aos breves. Não temos rosto, não temos corpo. Somos emoções emolduradas em um suspiro final, um alento da morte. Vejo, por este local, pobres almas que simplesmente se esqueceram o motivo de seus torpes estados de existência, restando-lhes apenas vagar e gemer sofregamente, aguardando o momento em que serão libertados deste eterno tormento. Que castigo sem igual! Nem mesmo caminhar cego em vales desconhecidos e perigosos se compara a encarar a virtual eternidade sem mesmo lembrar-se de quem é.

Mesmo aqueles que, há incontáveis, anos ainda retêm o pouco que lhes resta de seus traços pessoais, resguardando-se em sua fortaleza interior, ainda têm de lutar constantemente contra a cáustica loucura, que apodera a cada um de nós e nos enreda em suas malhas inexpugnáveis. Muitos daqueles que pouco entendem sobre seu novo estado decaem totalmente na espiral da insanidade, e em pouco tempo já estão combatendo o esquecimento com a loucura, pois ela é tudo que lhes restou. Tal passagem me lembrou os ditos de alguns dos mais desesperados – ou talvez ousados, ingênuos ou até mesmo iluminados – entre nós, que proferem que tal psicose post mortem, caso tomada firmemente como parte integrante e fundamental do âmago do ser, pode ajudar a combater a total obliteração da identidade, por também fazer parte dela. Particularmente, prefiro manter-me, enquanto é possível, longe dos caminhos da loucura, pois sei que enquanto uma de suas frias mãos nos abraça, a outra nos apunhala pelas costas. Tal tipo de auxílio ainda me dou ao luxo de dispensar, mas fico a ponderar por mais quanto tempo o serei capaz de fazer.

Oh, minha querida, subsisto em meu inferno particular, pagando em dor até mesmo por simples pensamentos, e me vejo à margem dos horrores da loucura, do oblívio ou até mesmo da destruição – pois ainda somos capazes de nos ferir através de um exercício da vontade (muito menos dificultoso do que tentar escrever-lhe esta carta ou tocar sua lívida face em noites sem lua), que muitos acabam praticando como válvula de escape aos seus crescentes impulsos violentos, que são acentuados até a beira da irracionalidade neste local.

Mesmo conhecendo as conseqüências, daria tudo que resta de mim por um último de seus suaves beijos, podendo assim decair à pior das torturas com a certeza de que minha vigília além do túmulo não foi em vão, mesmo sabendo que tal certeza rapidamente se tornará apenas poeira no vento. Quero apenas um fim para tudo isso, e cada vez mais não importo com qual seja ele.

Bondosos senhores do destino, correspondam ao pouquíssimo que me resta de esperança e leve estas breves palavras à minha amada, junto ao meu alerta para que não carregue nenhum peso que ate sua alma ao mundo dos breves quando tiver de deitar-se ao eterno sono, pois nada me feriria tanto quanto vê-la neste mesmo abismo que eu.

Caso esta carta chegue de alguma forma ao seu destino, de fato alimentando os resquícios de minha invocada esperança, rogarei escrever-lhe outras, talvez portando menos aflição e mais afeição. Nunca minha fé em milagres foi tão grande, mesmo em meio a esse lugar negro e sem vida. Não perca também a sua.


Do seu amado,

Gregory

4 comentários:

Anne Caroline Quiangala disse...

Gradação envolvente... nota-se, também um trabalho de concisão. A coesão/coerencia está cada vez melhor!O rebuscamento está na dose certa, muito natural. Resumindo: digno de romance da storyteller!

P Henrique disse...

Poxa, Carol, bem que eu queria escrever uns romances para a linha do Storyteller :). Enfim, obrigado pelos elogios.

Anne Caroline Quiangala disse...

:)

Tyr Quentalë disse...

Meu caro,
não queira se resumir aos romances para a linha Storyteller quando você pode atingir algo mais. Querer tal coisa é querer ficar às sombras de quem ganha os louros, pois quantos são lembrados por seus nomes naquele mundo leviano? Não! Não se resuma a isso. Queira ser mais do que um dos muitos romancistas que se perderam para a Storyteller da White-wolf

Brumas Negras

Um mundo que gera tanto fascínio quanto temor.