O início de toda essa espiral decadente de insanidade e horror deu-se pelos últimos idos de novembro, em meio a tardes frias e com neve no horizonte. Seria talvez o segundo ou terceiro caso apenas naquela quinzena, o que começava a perturbar-me, mesmo sendo eu um investigador de vasta vivência. Uma espécie de onda suicida tomara conta de meu distrito, culminando em mortes cada vez mais anormais. O último pobre-diabo fora um rapaz ainda jovem, embora de compleição algo funesta e digna de pena, encontrado após uma brusca queda com um sorriso tétrico no rosto, cuja sordidez fora acentuada pelos efeitos do impacto contra o solo. Aparentava ter partido abraçado em desespero, esculpindo para todo o sempre um grito em sua expressão cadavérica.
Acreditando haver mais que infortuna coincidência entre todos esses casos de falecimento, lancei-me em investigações a fim de satisfazer minha desconfiança. Minha intuição parecia sussurrar-me que havia algo de macabro por trás das tecituras da Dama do Destino, e mal delirava eu o quão amarga me seria a certeza dessa suspeita.
Valendo-me de uma sorte quase sobrenatural, por fim descobri onde residia o último dos suicidas. Fora há alguns séculos, sem dúvida, um requintado solar de grandes senhores do campo, ligados pela ancestralidade até o rapaz que me motivava a investigação, agora engolfado pelo irrefreável crescimento urbano. Entretanto, a construção possuía um aspecto que indicava abandono, além de um quê soturno, dado sua semelhança com o medievo estilo arquitetônico gótico combinada com sua imperturbável imensidão. Uma vez lá dentro, parecia sentir o peso do silêncio sobre mim, como se eras passadas e vidas pregressas ainda resguardassem aquele local. Olhos feitos do mais absoluto nada me vigiavam e um calafrio corria-me pela pele constantemente. Meus passos entrecortavam minha respiração e ecoavam dentro da minha paranóia, que de tão acentuada feria o meu orgulho de homem cético. Entretanto, não há homem sobre essa Terra capaz de suportar totalmente a diabólica pressão que aquele casarão exerce sobre a sanidade.
Após esquadrinhar por um longo período de tempo, encontrei uma biblioteca de grandes proporções, mesmo para nosso período vitoriano, que parecia ser o cômodo do solar mais freqüentado nos últimos tempos. Ali quedei-me por dilatadas horas, examinando volumes intrigantes que pareciam ter sido grafados a mão e se espalhavam por todas as prateleiras. Oh, e que lúgubres histórias contavam! Relatos que culminavam todos em uma morte solitária, vidas que terminavam sem nenhuma menção honrosa além de livros empoeirados e esquecidos. E que terror senti ao notar-me, quando minha consciência finalmente deu-se conta plenamente da situação em que encontrava, cercado por um obscuro museu de epitáfios, tão isolado do mundo e de tudo que era vivo.
O documento de data mais recente consistia num diário encapado em couro, também grafado a mão com nanquim cor de obsidiana, que de certo narrava os últimos suspiros do jovem senhor suicida. Através daquelas páginas cheias de peso e melancolia, constatei que seu autor parecia sofrer de algum distúrbio de ordem mental, talvez algum caso de esquizofrenia ou algo semelhante, além de estar caído em encantos por uma donzela de nome Alice. Sentindo que não mais deveria violar aquele depósito de memórias, abandonei-o da mesma forma que o encontrei, deixando que o destino cuidasse do mesmo.
Entretanto, os dias que se seguiram me viram tomado por uma espécie de curiosidade mórbida, um certo fascínio pela morte que parecia haver desperto em mim as obras contidas naquele casarão esquecido pelo mundo. Vozes lamuriosas assombravam meus sonhos, talvez provindas dos mais abissais recessos de minha mente ou dos frios rincões do reino de Hades. Perguntas ressonavam junto a pedidos desesperados de autores desconhecidos, um balé destoante que corroia-me a psique. A mácula do além-túmulo deitara-se sobre minha face, fazendo-me ouvir seu réquiem sussurrante com notas cada vez mais claras. Não restava-me mais nada a fazer além de atender ao chamado, uma idéia tão absurda quanto bizarra. Oh, como eu já estava avançado na espiral da insanidade!
Mais uma vez, lancei-me aos tomos empoeirados do solar do suicida, lendo-os com uma voracidade selvagem. Era tênue a barreira que separava-me de tocar as faces lívidas dos pobres angustiados que deram origem àquelas histórias. Sentia-os ao meu redor, dizendo coisas que ouvidos sãos e vivos não deveriam escutar. Meu ceticismo de homem iluminado fora esmigalhado sob botas de ferro, e a insegurança derivada de tal perda me apavorava e enlouquecia. E assim, como um animal acuado rilhando os dentes, descobri como encontrar aquela que talvez pudesse trazer alguma luz ao meu caminho soturno.
Mesmo com toda sua poesia, como eram impotentes as linhas que descreviam aquela donzela diante do esplendor real de sua beleza! Era a própria encarnação de Vênus, desenhada em tons mais barrocos. Vestes enlutadas cobriam seu delgado corpo e a Criação parecia se desdobrar sob seus pés. Aparições taciturnas eram suas aias, carregando um vestido de tecido nobre em suas mãos e o aroma da morte em seu encalço. Como era bela e triste a pobre Alice.
E assim, utilizando o dever de minha profissão como apoio, conheci aquela jovem. Por muitas vezes trocamos palavras, embora ela pouco se dispusesse a falar. Olhos do além vigiavam-na como possível, mesmo impotentes, e assim seguia o seu sofrer. Dentro dos meus limites de cavalheiro e humano, criei laços com a jovem Alice, servindo-a como um confessor e protetor, conforme ela se tornava mais aberta para comigo, o que demandou uma dose razoável de tempo e paciência. Pude aos poucos começar a mensurar a razão dos suicídios de alguns dos envolvidas com ela. De certo, seus fins foram apenas a culminância de uma longa e debilitante tragédia pessoal, abastecida pelos encantos letais daquela dama dos mortos. Mesmo ciente de tais conclusões, entretanto, quase vi-me trilhar o mesmo caminho que tais pobres desafortunados.
Em certa noite de lua nova, através de um telegrama borrado por lágrimas, Alice segredava-me uma agonia lacerante, implorando-me ajuda. Fui o mais rápido que pude até sua moradia, encontrando-a envolta por espectros que uivavam dor e loucura. A morte a clamava, e ela pranteava em retorno, incapaz de tirar a própria vida, mas desejosa de enveredar-se pelo Aqueronte. Ela implorava-me que a ajudasse a partir, ou morreria afogada em desespero. Como foram longos aqueles instantes de decisão.
Quando Caronte já se aproximava em sua barca, a idéia mais macabra surgiu em minha mente, que apesar de tal qualidade era paradoxalmente dotada de gênio e esperança. Implorei ao mítico barqueiro que levasse Alice, através de águas sombrias e turvas, até junto de seus amados, no reino dos que já se foram, mesmo sem ter transposto o limiar da morte. Ofereci-lhe o pagamento costumeiro, pagando os dois óbolos por Alice. Não sei se ele apiedou-se do estado deplorável ao qual eu me sujeitava em nome daquele pedido, que era motivado pelo mais altivo dos sentimentos e consciência de que era o certo a ser feito, ou se era por outro motivo impossível de ser concebido por um pobre mortal, mas aceitou realizá-lo após breve reflexão.
E assim, Alice partiu para os braços de quem amava, embora eu estivesse impossibilitado de vê-la ir-se embora. Para sempre o mundo da luz me foi negado, mas ao menos a morte não mais caminharia junto a uma dama no nosso mundo dos breves, arrastando almas torturadas para seus domínios obscuros através dela. Meu trabalho estava concluído.
2 comentários:
Bem, vou "me auto-comentar". É o seguinte: essa história é uma espécie de "continuação" das duas últimas postadas aqui no Brumas Negras ('Carta aos Breves' e 'O Dom do Corvo'), e por isso tem tantas referências a elas. Se é a última ou não dessa "linha", ainda não sei dizer.
Esse conto ficou consideravelmente maior que os demais, então me desculpem pela leitura cansativa. No mais, espero que apreciem.
Tudo bem, Pedro. Quando é grande, a diferença é que demoro decênios pra ler/comentar.(pra, no final, não saber o que dizer).Ah, continua sendo o story-teller guy do Brumas =]
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