Minha mãe sempre nos disse para ficarmos sempre juntos, meu irmão e eu. Alertava-nos, com o coração pesado de preocupação, a respeito dos males que rondavam nossa vila, fossem eles visíveis ou não. O principal deles era, talvez, as brumas negras. Os mais velhos conheciam inúmeras histórias sobre elas, o que incluía até mesmo relatos de experiências pessoais, desde amigos até famílias inteiras perdidas. “Os terrores das brumas estão além da força de qualquer espírito, até mesmo dos mais bravios”, dizia um provérbio de nosso povo. Mesmo aqueles que conseguiam retornar, voltavam profundamente alterados, a ponto de se crer que estavam possuídos por espíritos malignos, embora alguns poucos conseguissem recobrar parte de sua normalidade novamente. Porém, havia algo que afligia a todos esses desafortunados pelo resto de suas existências: nenhum deles era capaz de reproduzir o que haviam presenciado enquanto estavam perdidos em meio às névoas sem fim.
Meu irmão, que era cerca de quatro anos mais velho que eu, sofria de um intenso pavor das brumas. Ao menor sinal de uma formação neblinosa, fosse ela natural ou enegrecida, ele logo corria para casa e oferecia preces a todos os deuses e espíritos que lembrasse, normalmente me arrastando consigo. Mesmo que a maioria dos desaparecimentos ocorresse após o crepúsculo, seu medo letárgico também se estendia às neblinas da aurora. Por muitas vezes foi incapaz de ajudar nossos pais no serviço matutino, sobretudo porque as terras que cultivávamos ficavam próximas ao rio que cortava nossa vila. Dizia ele que todo esse temor era fruto de uma série de pesadelos, nos quais era exposto a toda sorte de horrores em meio às brumas negras. Entretanto, ele nunca se aprofundava respeito dessas visões oníricas, alegando ser tomado por grande aflição quando tocavam em tal assunto. Eu sempre desconfiei que tais pesadelos não passavam de invenção, mas nunca fui corajoso o suficiente para dar voz à essa suposição, temendo uma reprimenda violenta de meu irmão.
Contavam também as lendas de nosso povo que apenas as bruxas eram capazes de trilhar o caminho que desejassem em meio às brumas. Tais vias, se dizia, eram extremamente sinuosas e aparentemente não conduziam a lugar algum, mas no fim se revelavam um precioso atalho. Entretanto, apenas os loucos e os desesperadamente necessitados se arriscavam a divisar as brumas tendo uma feiticeira como guia. Os grandes senhores, que habitavam as colinas e se vestiam com armaduras de metal e soberba, davam caça a elas de quando em quando, pois temiam sua ardilosa magia. Justificavam seus atos com palavras de suposta pureza e justiça, mas atraíam para si ainda mais maldições e imprecações de mau agouro. Mal sabiam eles o mal que causariam a dois pobres garotos.
Nos primeiros dias do inverno mais rigoroso de nossas vidas, meu irmão e eu assistimos ao selar do destino de mais uma vítima dos senhores guerreiros. Atada a um tronco e prestes a ser engolfada por chamas impiedosas, uma mulher de aparência rústica e cansada fulminava a todos presentes no coração de nossa pequena vila com seu olhar de desespero e ira. Sua dor era tão grande que até mesmo embotava-lhe a razão. Suas palavras de fúria eram descarregadas até mesmo sobre nós, humildes pessoas do campo, tão ou mais impotentes que ela diante dos lordes das fortalezas de pedra. E foi então que meu maior temor tornou-se real. Os olhos da condenada feiticeira fitaram os de meu irmão, paralisando-o de terror enquanto suas maldições invocavam vingança através das brumas negras.
Abalado pelo mais profundo e íntimo dos horrores, meu irmão, assim que pôde, pôs-se a correr de forma desvairada, como que possuído por uma loucura instantânea. Rapidamente disparei em seu encalço, abrindo espaço em meio a uma multidão indiferente a nós dois. Nossa corrida logo nos levou além dos limites do vilarejo, adentrando matas úmidas e escurecidas pelo final do entardecer. Antes que meu irmão retomasse as rédeas de seus atos, estávamos duplamente perdidos: tanto em meio ao arvoredo sem trilhas quanto um do outro. Gritamos para tentarmos ao menos nos reencontrar, mas nossas vozes pareciam abafadas e sem vigor. O véu noturno desceu sobre nós, minando nossa esperança. A lua quase cheia, nossa única fonte de luz, serviu-nos apenas para nos revelar nossa praga derradeira, esgueirando-se em meio à escuridão. Lá vinham as brumas negras, já mordiscando nossos calcanhares, engolindo-nos em pânico e perdição. Eu quase podia sentir meu irmão amaldiçoando os velhos deuses, aos quais sempre erguera suas preces, por tamanha desgraça. E assim foram cumpridas as últimas palavras da bruxa em chamas.
A princípio, senti meu corpo entorpecido, como que exausto por vários dias de trabalho. Minha respiração tornou-se pesada, o ar parecia espesso e opressivo. Senti o cheiro do início das chuvas atingir-me o olfato, um súbito frio arrepiou-me a pele. Tudo que eu via eram névoas, enegrecidas como raivosas nuvens de tempestade. O mundo girava e dançava ao meu redor, me desnorteando totalmente. Se eu julgava aquele tormento físico o pior dos castigos, nem sequer imaginava o quão maltratada seria minha alma. A todo momento pensava que terrível fim teria eu, um pobre jovem, sozinho e tomado pelo terror. Pensar no destino de meu irmão me afligia tanto que não era capaz de fazê-lo por muito tempo.
Logo vieram as vozes, lamuriantes, brotando de todas as direções num verdadeiro pandemônio. Sussurram-me coisas horríveis, plantavam-me o medo. Quando verdadeiramente pude notar, constatei que todas elas revelavam-me segredos terríveis dos recessos obscuros dos corações daqueles que se perderam nas brumas. Havia tantas dúvidas, tantos receios, tantos rancores, tantos pecados. Em meio àquele turbilhão de angústias, pude perceber que perder-se em meios as brumas também significava perder-se dentro de suas próprias aflições. Encarar a certeza do fim fazia com que os perdidos pusessem seus passados numa balança, consumindo-os no remorso e torturando-os com as tarefas inacabadas. As névoas não traziam apenas a morte, mas também a loucura.
Infelizmente, minha iluminação deu-se tardia demais para livrar-me de sua verdade nociva. No período atemporal que passei em meio ao bosque enevoado, notei o quão profundamente temia a solidão. Chorava por meu irmão, porém mais por me sentir inseguro sem ele do que por seu próprio destino. E assim fui castigado, apartado de qualquer companhia até o mais delirante desespero. Quaisquer que sejam as forças por trás das brumas, creio que elas tenham se dado por satisfeitas e me libertado quando eu já desejava a morte, sendo esse o seu ato mais cruel.
Meu irmão nunca retornou daquele episódio. Outras seis pessoas o acompanharam naquela noite, formando o cortejo dos perdidos para um lugar desconhecido. Quanto a mim, fui afetado de tal forma que nunca mais pude permanecer só sem ser torturado por aquelas terríveis lembranças. Compreendi também porque os sobreviventes das brumas nunca falam sobre suas experiências. Afinal, a perdição está sempre dentro de si próprio, e essa é uma lição que apenas as almas vestidas em metal e vigor genuínos podem aprender.
2 comentários:
Tenho uma proposta para você a respeito do seu texto em homenagem ao blogger.entre em contato comigo assim que puder.
Cara. Eu li em primeira mão e disse: o melhor conto seu que já li!Dinâmico e misterioso. Incrivelmente envolvente. Viu a empolgação?Pois é!
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