Willey não sabia onde a coisa – ou melhor, criatura – estava, mas sentia-a sufocantemente próxima. Pensou, quem sabe, pela vigésima vez, que alguém talvez pudesse socorrê-lo, mas sua idéia logo caiu por terra ao ver a madrugada nebulosa que abraçava sua choupana rústica, que há poucos meses chamava de lar. Agora, era como se fosse chamá-la de jazigo a qualquer instante.
Tábuas velhas rangeram sob as solas de suas botas, ainda sujas de terra. Ele respirava no ritmo acelerado de suas batidas cardíacas, aproximando-se cada vez mais de um colapso. Tateou sobre o armário velho, empoeirado e repleto de armadilhas aracnídeas para insetos, até que seus dedos tocaram no metal gélido da arma. Ela era obviamente muito mais apropriada a uma caça do que para qualquer tipo de defesa pessoal, mas era o melhor que ele podia dispor naquele momento. Preparou-a para disparar, e cada estalido metálico lhe fazia palpitar ainda mais o coração, pois pareciam ruidosos como tratores apesar de suaves como uma agulha.
A velha espingarda parecia pesada como a cruz, e com certeza para Willey carregava a mesma ressonância de cruel inevitabilidade da dor e da morte. A coisa estava por lá, espreitando nas sombras, como um grande felino prestes a dar o bote. Os galhos nus de uma macieira arranhavam a janela da sala, no mesmo local onde a coisa estivera observando-o momentos atrás. O rancheiro estava com os sentidos todos embotados, e sua cabeça parecia pressionada pelo exterior, como num mergulho profundo. Um barulho – folhas secas trituradas ao pisar – se pronunciou de uma janela lateral, e o cano da arma logo voltou-se para tal localidade. O coração agora batendo na ponta do indicador direito, o único homem num raio de vários e vários quilômetros aproximou-se a passos lentos de onde viera o ruído, equilibrando-se forçosamente a cada passo.
Claro, não havia nada por lá. Mas houvera, Willey poderia jurar por sua vida. Passou até os ombros pela janela agora aberta e inclinou-se para examinar a grama logo abaixo, mas o negrume da noite enevoada impedia um exame mais minucioso. Entretanto, mesmo não sabendo se a escuridão enganava sua visão, Willey deu por quase certo que alguém por ali passara, e há pouco tempo. Voltou novamente o corpo para dentro e cerrou firmemente a janela, seguindo agora a possível trajetória da criatura, mas pelo lado interno da casa.
A busca do solitário rancheiro lhe levou a fazer um exame superficial pelas janelas do corredor, da sala de jantar e da cozinha, mas obtendo sempre o mesmo vago resultado. Cada vez que se aproximava mais de uma confrontação direta com o ser, Willey se sentia ainda mais apavorado. Suas pernas tremiam, sua respiração estava pesada, ofegante e irregular, e uma vontade de chorar crescia em seu interior. Pior do que um combate físico contra algo desconhecido – que Willey notara como tendo uma vaga forma humanóide, mas de um aspecto totalmente diferente de tudo que era natural e com certeza saído de algum pesadelo febril – era essa sensação de apreensão temerosa, de antecipação de um perigo iminente. Era como nadar cego e sangrando num oceano povoado de tubarões. De certa forma, aquele local era realmente isolado como uma ilha bem no meio do oceano – um ótimo lugar para ser devorado pelos tubarões.
Repentinamente, uma forte batida se fez ouvir na porta da fronte, localizada na sala. Willey respirava pela boca, a face mergulhada em suor frio e tenso. No curto caminho de volta ao cômodo mais amplo da casa, o solitário homem imaginou se iria para o céu ou para o inferno, caso morresse. Ao correr por seu passado, soube que era mais provável que fosse a segunda opção, se realmente existisse essa coisa de vida após a morte. De qualquer forma, ao menos estaria acompanhado por uma hoste de milhões de almas. Sim, teria todo o seu calor humano.
Após o girar rápido da chave, Willey abriu a porta de modo abrupto, já esperando deparar-se cara-a-cara com seu espreitador noturno. Entretanto, não havia nada por lá. Nada, nada além da grama seca e da terra úmida, nada além de algumas árvores quase sem folhas e a brisa outonal que corria pelos seus galhos expostos. Era impossível, ele deveria estar lá. De súbito, Willey olhou para os lados e viu vários e vários seres, mas não eram do mesmo tipo que viera lhe visitar antes.
Estavam lhe chamando. Era a hoste, cortejando o solitário e amargurado homem armado com sua espingarda trêmula. E então, ele entendeu. Deveria partir junto a eles, e só havia uma forma.
E, na verdade, aquilo era bem mais pesado que uma cruz.
4 comentários:
Sou suspeita :P
Maaaaas,
parabéns,
adorei!
Nossa.
Um autor que caracteriza o psicológico do personagem.
Resultado incrível!
Publique mais, mais, mais!
Acho que é meu ponto favorito nesse tipo de escrita: o psicológico do personagem. E, bem, tentarei sempre publicar mais, mais e mais, rs.
A tensão que envolve o texto, nos faz devorar as linhas como crianças gulosase suas guloseimas, mas é o findar da história que mais me cativou. O desfecho que encerrou com chave de ouro o texto tão bem escrito. Quando teremos o próximo?
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