segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Óbolos a Alice

O início de toda essa espiral decadente de insanidade e horror deu-se pelos últimos idos de novembro, em meio a tardes frias e com neve no horizonte. Seria talvez o segundo ou terceiro caso apenas naquela quinzena, o que começava a perturbar-me, mesmo sendo eu um investigador de vasta vivência. Uma espécie de onda suicida tomara conta de meu distrito, culminando em mortes cada vez mais anormais. O último pobre-diabo fora um rapaz ainda jovem, embora de compleição algo funesta e digna de pena, encontrado após uma brusca queda com um sorriso tétrico no rosto, cuja sordidez fora acentuada pelos efeitos do impacto contra o solo. Aparentava ter partido abraçado em desespero, esculpindo para todo o sempre um grito em sua expressão cadavérica.

Acreditando haver mais que infortuna coincidência entre todos esses casos de falecimento, lancei-me em investigações a fim de satisfazer minha desconfiança. Minha intuição parecia sussurrar-me que havia algo de macabro por trás das tecituras da Dama do Destino, e mal delirava eu o quão amarga me seria a certeza dessa suspeita.

Valendo-me de uma sorte quase sobrenatural, por fim descobri onde residia o último dos suicidas. Fora há alguns séculos, sem dúvida, um requintado solar de grandes senhores do campo, ligados pela ancestralidade até o rapaz que me motivava a investigação, agora engolfado pelo irrefreável crescimento urbano. Entretanto, a construção possuía um aspecto que indicava abandono, além de um quê soturno, dado sua semelhança com o medievo estilo arquitetônico gótico combinada com sua imperturbável imensidão. Uma vez lá dentro, parecia sentir o peso do silêncio sobre mim, como se eras passadas e vidas pregressas ainda resguardassem aquele local. Olhos feitos do mais absoluto nada me vigiavam e um calafrio corria-me pela pele constantemente. Meus passos entrecortavam minha respiração e ecoavam dentro da minha paranóia, que de tão acentuada feria o meu orgulho de homem cético. Entretanto, não há homem sobre essa Terra capaz de suportar totalmente a diabólica pressão que aquele casarão exerce sobre a sanidade.

Após esquadrinhar por um longo período de tempo, encontrei uma biblioteca de grandes proporções, mesmo para nosso período vitoriano, que parecia ser o cômodo do solar mais freqüentado nos últimos tempos. Ali quedei-me por dilatadas horas, examinando volumes intrigantes que pareciam ter sido grafados a mão e se espalhavam por todas as prateleiras. Oh, e que lúgubres histórias contavam! Relatos que culminavam todos em uma morte solitária, vidas que terminavam sem nenhuma menção honrosa além de livros empoeirados e esquecidos. E que terror senti ao notar-me, quando minha consciência finalmente deu-se conta plenamente da situação em que encontrava, cercado por um obscuro museu de epitáfios, tão isolado do mundo e de tudo que era vivo.

O documento de data mais recente consistia num diário encapado em couro, também grafado a mão com nanquim cor de obsidiana, que de certo narrava os últimos suspiros do jovem senhor suicida. Através daquelas páginas cheias de peso e melancolia, constatei que seu autor parecia sofrer de algum distúrbio de ordem mental, talvez algum caso de esquizofrenia ou algo semelhante, além de estar caído em encantos por uma donzela de nome Alice. Sentindo que não mais deveria violar aquele depósito de memórias, abandonei-o da mesma forma que o encontrei, deixando que o destino cuidasse do mesmo.

Entretanto, os dias que se seguiram me viram tomado por uma espécie de curiosidade mórbida, um certo fascínio pela morte que parecia haver desperto em mim as obras contidas naquele casarão esquecido pelo mundo. Vozes lamuriosas assombravam meus sonhos, talvez provindas dos mais abissais recessos de minha mente ou dos frios rincões do reino de Hades. Perguntas ressonavam junto a pedidos desesperados de autores desconhecidos, um balé destoante que corroia-me a psique. A mácula do além-túmulo deitara-se sobre minha face, fazendo-me ouvir seu réquiem sussurrante com notas cada vez mais claras. Não restava-me mais nada a fazer além de atender ao chamado, uma idéia tão absurda quanto bizarra. Oh, como eu já estava avançado na espiral da insanidade!

Mais uma vez, lancei-me aos tomos empoeirados do solar do suicida, lendo-os com uma voracidade selvagem. Era tênue a barreira que separava-me de tocar as faces lívidas dos pobres angustiados que deram origem àquelas histórias. Sentia-os ao meu redor, dizendo coisas que ouvidos sãos e vivos não deveriam escutar. Meu ceticismo de homem iluminado fora esmigalhado sob botas de ferro, e a insegurança derivada de tal perda me apavorava e enlouquecia. E assim, como um animal acuado rilhando os dentes, descobri como encontrar aquela que talvez pudesse trazer alguma luz ao meu caminho soturno.

Mesmo com toda sua poesia, como eram impotentes as linhas que descreviam aquela donzela diante do esplendor real de sua beleza! Era a própria encarnação de Vênus, desenhada em tons mais barrocos. Vestes enlutadas cobriam seu delgado corpo e a Criação parecia se desdobrar sob seus pés. Aparições taciturnas eram suas aias, carregando um vestido de tecido nobre em suas mãos e o aroma da morte em seu encalço. Como era bela e triste a pobre Alice.

E assim, utilizando o dever de minha profissão como apoio, conheci aquela jovem. Por muitas vezes trocamos palavras, embora ela pouco se dispusesse a falar. Olhos do além vigiavam-na como possível, mesmo impotentes, e assim seguia o seu sofrer. Dentro dos meus limites de cavalheiro e humano, criei laços com a jovem Alice, servindo-a como um confessor e protetor, conforme ela se tornava mais aberta para comigo, o que demandou uma dose razoável de tempo e paciência. Pude aos poucos começar a mensurar a razão dos suicídios de alguns dos envolvidas com ela. De certo, seus fins foram apenas a culminância de uma longa e debilitante tragédia pessoal, abastecida pelos encantos letais daquela dama dos mortos. Mesmo ciente de tais conclusões, entretanto, quase vi-me trilhar o mesmo caminho que tais pobres desafortunados.

Em certa noite de lua nova, através de um telegrama borrado por lágrimas, Alice segredava-me uma agonia lacerante, implorando-me ajuda. Fui o mais rápido que pude até sua moradia, encontrando-a envolta por espectros que uivavam dor e loucura. A morte a clamava, e ela pranteava em retorno, incapaz de tirar a própria vida, mas desejosa de enveredar-se pelo Aqueronte. Ela implorava-me que a ajudasse a partir, ou morreria afogada em desespero. Como foram longos aqueles instantes de decisão.

Quando Caronte já se aproximava em sua barca, a idéia mais macabra surgiu em minha mente, que apesar de tal qualidade era paradoxalmente dotada de gênio e esperança. Implorei ao mítico barqueiro que levasse Alice, através de águas sombrias e turvas, até junto de seus amados, no reino dos que já se foram, mesmo sem ter transposto o limiar da morte. Ofereci-lhe o pagamento costumeiro, pagando os dois óbolos por Alice. Não sei se ele apiedou-se do estado deplorável ao qual eu me sujeitava em nome daquele pedido, que era motivado pelo mais altivo dos sentimentos e consciência de que era o certo a ser feito, ou se era por outro motivo impossível de ser concebido por um pobre mortal, mas aceitou realizá-lo após breve reflexão.

E assim, Alice partiu para os braços de quem amava, embora eu estivesse impossibilitado de vê-la ir-se embora. Para sempre o mundo da luz me foi negado, mas ao menos a morte não mais caminharia junto a uma dama no nosso mundo dos breves, arrastando almas torturadas para seus domínios obscuros através dela. Meu trabalho estava concluído.

domingo, 13 de setembro de 2009

O Dom do Corvo

Desde um terrível acidente, há alguns anos, desenvolvi uma espécie de capacidade extraordinária e sobre-humana, da qual pouquíssimo posso discorrer sobre suas causas ou origens. Consiste na habilidade de enxergar no olhar de cada pessoa quanto tempo lhe resta nesse mundo desprezível, numa espécie de contagem regressiva altamente subjetiva e irrevogável. Adquiri-a após um acontecimento que me pôs de frente ao abismo da morte, fazendo-me olhar por tanto tempo para seu fosso negro que agora não posso mais livrar minha visão de sua mácula. Ainda sinto seu hálito em minha face, que vem sempre carregado com uma amarga risada que expressa a talvez mais pura ironia que é nossa existência terrena. Se todos pudessem contemplar as provações do além, certamente mudariam em muito seu modo de agir e existir.

O que posso dizer de mais concreto a respeito de meu dom macabro é que ele certamente é capaz de abalar a sanidade de qualquer pessoa. Muitos talvez abandonar-se-iam ao mais puro desespero, tecendo prantos de prata intermináveis enquanto degustam amargamente seu niilismo particular na mais suja das sarjetas, enquanto outros se dedicariam a aliviar o sofrimento daqueles prestes a partir da melhor forma que lhes fosse possível, mesmo sem revelar a cruel verdade contida em seu olhar. Considero tais extremos uma inteira tolice, e certamente não faço as vezes nem de miserável nem de trágico herói. Mesmo um homem com o mais precioso dos poderes continua sendo um homem, e não seria diferente em meu caso. Não acredito na caridade pura de intenção nem na total falta de esperança, sobretudo por já ter presenciado pessoas que deram cabo dos atos mais nobres de suas vidas pouco antes de seu ocaso.

Minha sina é contemplar todas as facetas da morte, das mais benevolentes às mais trágicas. Muitos enfermos a esperam de braços abertos, enquanto outras pessoas deixam cicatrizes no mundo com sua ausência. Depois desses anos todos, sinto o soprar da destruição sussurrar-me no ouvido e guiar-me até onde tocará mais uma alma com seus dedos gélidos e esquálidos, sendo o olhar apenas uma lúgubre confirmação do que meu instinto já previa. Pobres humanos, que não podem sentir as brumas da morte se aproximando! Quanto sonhos não já vi serem ceifados subitamente, sem a menor premeditação por parte de seus idealizadores, enquanto alguns poucos livram-se do pesadelo de suas vidas. Certamente, uma rotina assim tornou-me um homem melancólico e taciturno, um corvo negro em pele de gente. O contato social tornou-se extremamente angustiante para mim, como qualquer um com um mínimo de sensibilidade poderia concluir. Não se pode ver doçura no sorriso de um amigo quando se vê a morte em sua face. É triste e solitária minha sina, digna das mais homéricas tragédias gregas.

Nesse solitário caminho, cujo meio é cheio de fins, carrego o fado que acredito que caiba a mim. Sei que não há nada pior para os falecidos do que o total esquecimento, pois é da lembrança de suas vidas terrenas que eles são feitos, portanto cuido para que nenhuma alma parta no total esquecimento. Aquelas cuja memória não dispõe dos corações de seus entes queridos para descansar tornam-se meus mais exaustivos trabalhos. Uma simples cerimônia fúnebre não seria o suficiente, portanto, empenho-me em criar uma crônica a respeito da pobre vida do recém-falecido. Minha casa tornou uma biblioteca dos condenados, volumes e volumes de histórias com o mesmo fim. Não era esse o destino que eu sonhava em dar para minha veia artística, mas certamente a aquisição de meu peculiar dom mudou todo o prognóstico de minha vida.

Entretanto, o último caso fez-me deparar com algo inédito. Encontrei-a velando o corpo de alguém que lhe era muito querido, certamente uma alma que partira plena de amor e boas lembranças. Seus cabelos eram da cor da noite e seus olhos de esmeralda, sua pele alva e seu rosto delicado e angelical. A epítome da pureza, se é possível existir algo assim. Olhei em seus olhos e vi o tempo escorrer junto com suas lágrimas, cada vez mais perto de seu fim. Fui imediatamente arrebatado por sua beleza e ternura, algo que nunca antes havia me acontecido e que eu julgava impossível, dado meu estado de existência. Passei a acompanhá-la em seu luto, pela primeira vez temendo verdadeiramente pelo fim de alguém.

Os dias passavam-se morosamente, enquanto eu conhecia aquela doce jovem que atendia pelo nome de Alice. Amava-a como se poderia amar a um anjo, uma espécie de admiração temerosa, pois receava macular sua pureza. Invejei secretamente a própria morte, pois poderia tocá-la tão intimamente muito em breve. E assim, nesse meu querer platônico, esperei pelo fim que se aproximava inexoravelmente.

Oh, e que doce surpresa não tive ao descobrir que estava enganado! Salve as ironias amargas da extinção. Mal sabia eu, pobre tolo, que aqueles olhos cristalinos não eram capazes de refletir a mácula da morte, mas apenas a mais terna das compaixões. Eram como um espelho, no qual eu previ inconscientemente meu destino. E fora o por muito negado amor que me levara à morte. Pobre Alice, fadada a derramar amargas lágrimas, pois fora ela que, numa tentativa de suicídio após ler uma carta que nunca mais poderei descobrir do que se trata, selou meu fim. E é nesse segundo infinito, após evitar a queda daquela doce jovem, que toda a minha vida transcorre diante de meus olhos. Já posso até mesmo sentir o além se abrir diante de mim, seu portal de ébano margeado pelo asfalto do solo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Navalha

por Ju Blasina
Vou te cortar lentamente
Com a lâmina das minhas angustias
Pouco afiada – mal mirada – dor alargada
Vou te cortar diariamente
Lenta e eternamente
Deixo a ti, a porta aberta
Deixo a ti, a chave incerta
Fecho os olhos, pouco alerta
Prendo a inspiração e a respiração
Ainda sinto o cheiro da tua transpiração
Tu não partes
Junta as partes e permanece ali
Preso a mim, presa a ti
Cordeiro do sacrifício
E novamente te toco
Como ferro em brasa
Penetro – faço de ti minha casa
Te mordo, te marco, te sofro, te rasgo
Pouco a pouco apago a vida em ti
O brilho dos teus olhos – opaco
O grito dos teus lábios – já fraco
E tudo o que resta – um naco
Daquilo que um dia sorriu em ti
Vou de cortar lentamente
Em muitas partes, em muitos ramos
E se te corto é porque te amo
E só me alimento de ti
Vou de cortar lentamente...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A DANÇA RUBRA DE LUNNA — PRÓLOGO

— NOTAS PARA O ESQUECIMENTO —

By Ju Blasina







“Esta é a história da minha vida e pós-vida.
Por que a estou escrevendo?

Não sei ao certo...
Talvez, ao final, um de nós descubra”




LUNNA





Imagem: Jairo Tx


EU ERA APENAS UMA CRIANÇA quando descobri que a vida seria difícil. Éramos uma pequena tribo errante: meus pais, avós e eu. Cresci ouvindo meu avô contar o episódio do meu nascimento:

Dizia ele que o mal e o bem, existentes em toda criatura, vieram divididos em duas partes, duas meninas e que, conforme mandava a tradição, a face do mal foi identificada e dada em sacrifício ao Sol, garantindo a mim uma vida feliz e próspera...

Se essa é ou não a verdade, eu nunca soube, mas passadas tantas décadas, desisti de esperar por tal recompensa. Lembro de espiar minha mãe chorando escondida enquanto segurava uma pequena mecha de cabelo. Talvez minha irmã tenha morrido em outras circunstâncias e meu avô, como grande contador de estórias que era, transformou o incidente nesta parábola, apenas uma das tantas parábolas que eu nunca entendi. Lamento que seus ensinamentos tenham se dispersado no fragmentar de minhas memórias. Guardo apenas uma frase clara, algo que ele me dizia com frequencia:

”Wenona, não ouça apenas o que as palavras dizem, ouça o silêncio,
procure o sussurro perdido no vento”.


Wenona não era exatamente um nome — eu era muito pequena para os grandes sonhos de onde vem os nomes — me chamavam assim, de acordo com a ordem do meu nascimento; em sioux, Wenona significa “a primeira filha”.

A montanha nunca me batizou, por isso, durante a vida, passei por muitos nomes. Nomes que nada significavam para mim, exceto que eu não sabia o que ser. Muitos acham que isso é besteira — muitos são idiotas — o nome pode determinar o destino do indivíduo. Um nome errado é mil vezes pior que nome algum. Foi só na morte que encontrei meu verdadeiro nome: Lunna.

Nossa tribo era composta de duas ou quatro famílias, não estou bem certa disso — o tempo confunde os números e borra os rostos — vagávamos em busca de novas terras, porque o homem branco nunca tinha terras o suficiente! Era como se não restasse chão algum em que pudéssemos parar. Andávamos sempre, seguindo adiante sem saber sequer para onde.

Hoje, quando ouço alguém dizendo “bons tempos aqueles”, preciso me segurar para não voar no pescoço do infeliz. Nunca houve essa besteira de “bons tempos”, não que eu tenha visto e acredite, eu vi muitos deles. Os “tempos” são sempre difíceis, todos eles!

Por onde quer que passássemos, nossa presença era incômoda. Lembro de ir a uma feira com meu pai e de lá sairmos enxotados; arremessavam coisas em nós; perguntei a ele o porquê de tanto ódio e ele disse:

“Esta é uma resposta que nem mesmo elas tem, Wenona, está no sangue...”

Pouco tempo depois, pude constatar que ele estava certo... Numa dada noite o sangue delas ferveu e o ódio tomou grandes proporções:

Acordamos em meio às chamas. Os homens tentavam inutilmente conter o fogo, enquanto as mulheres protegiam as crianças. Os jovens salvavam o que dava. Lembro de minha mãe dizendo:

”Wenona, tá vendo aquela lua? Ela vai te proteger enquanto o sol não vem. Agora corra! E só pare quando teus pés sangrarem. Não precisa chorar, sangrar é bom...”

E secando as próprias lágrimas, me entregou uma pequena trouxa de pano com tudo que havia conseguido salvar; um “tudo” que era quase nada...
“Agora vai: que Magena te proteja”
.


Eu corri, enquanto o fogo foi ficando para trás, pequenas labaredas dançando na noite escura. Era até bonito de se ver:

As chamas vermelhas, rodopiantes, iluminadas pela lua.
O vento soprava os lamentos, como uma canção tocada ao longe.
Em minha inocência de menina aquilo pareceu mais belo do que deveria.


Meus pés demoraram muito a sangrar e quando finalmente parei, já não via mais o fogo, já não havia mais a lua, não havia mais nada: A noite partiu, sem deixar sequer rastro da vida que tinha.

Foi um ensaio da morte, mal sabia eu que o grande show estava longe de começar...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Carta aos Breves

Sabe, pensei em milhares de formas para começar a escrever essa carta, mas todas elas me desagradaram gradativamente mais. Fui desde o clássico “Querida Alice” até algo mais rebuscado, talvez alguma frase profunda ou com um quê poético. Entretanto, esse tipo de reflexão serve-me apenas como desgaste. Sempre que afundo em idéias por mais que alguns segundos, invariavelmente elas apontam para você, contando as milhas e centímetros incontáveis que nos separam. Consegue imaginar que tormento me é não poder ter como companheiros nem mesmo os meus pensamentos? Houvesse tortura terrena similar, tê-lo-ia como carícia frente ao que sofro. Pudesse ter meu corpo dilacerado, o preferiria em troca de paz à minha mente.

Tão aflitivo quanto as lembranças que me corroem a sanidade é o esforço necessário para fazer correr a tinta sobre o papel. Um gesto simples, delicado, por tantas vezes repetido, custa-me uma concentração quase impossível de reunir. Escrever sempre foi parte de mim, e agora me é extremamente angustiante. Tente imaginar algo que lhe é querido e familiar, que subitamente lhe é extirpado à força, qual faca a cortar a carne – talvez consiga imaginar um mínimo a respeito da falta que me faz dedicar-me à minha arte.

Enquanto partes do que reconhecia como eu, se destorcem e deixam de existir, luto uma guerra particular a fim de manter o que resta de minha identidade. Mortos não têm personalidades, são apenas um conjunto de pecados e angústias que ainda os prendem junto aos breves. Não temos rosto, não temos corpo. Somos emoções emolduradas em um suspiro final, um alento da morte. Vejo, por este local, pobres almas que simplesmente se esqueceram o motivo de seus torpes estados de existência, restando-lhes apenas vagar e gemer sofregamente, aguardando o momento em que serão libertados deste eterno tormento. Que castigo sem igual! Nem mesmo caminhar cego em vales desconhecidos e perigosos se compara a encarar a virtual eternidade sem mesmo lembrar-se de quem é.

Mesmo aqueles que, há incontáveis, anos ainda retêm o pouco que lhes resta de seus traços pessoais, resguardando-se em sua fortaleza interior, ainda têm de lutar constantemente contra a cáustica loucura, que apodera a cada um de nós e nos enreda em suas malhas inexpugnáveis. Muitos daqueles que pouco entendem sobre seu novo estado decaem totalmente na espiral da insanidade, e em pouco tempo já estão combatendo o esquecimento com a loucura, pois ela é tudo que lhes restou. Tal passagem me lembrou os ditos de alguns dos mais desesperados – ou talvez ousados, ingênuos ou até mesmo iluminados – entre nós, que proferem que tal psicose post mortem, caso tomada firmemente como parte integrante e fundamental do âmago do ser, pode ajudar a combater a total obliteração da identidade, por também fazer parte dela. Particularmente, prefiro manter-me, enquanto é possível, longe dos caminhos da loucura, pois sei que enquanto uma de suas frias mãos nos abraça, a outra nos apunhala pelas costas. Tal tipo de auxílio ainda me dou ao luxo de dispensar, mas fico a ponderar por mais quanto tempo o serei capaz de fazer.

Oh, minha querida, subsisto em meu inferno particular, pagando em dor até mesmo por simples pensamentos, e me vejo à margem dos horrores da loucura, do oblívio ou até mesmo da destruição – pois ainda somos capazes de nos ferir através de um exercício da vontade (muito menos dificultoso do que tentar escrever-lhe esta carta ou tocar sua lívida face em noites sem lua), que muitos acabam praticando como válvula de escape aos seus crescentes impulsos violentos, que são acentuados até a beira da irracionalidade neste local.

Mesmo conhecendo as conseqüências, daria tudo que resta de mim por um último de seus suaves beijos, podendo assim decair à pior das torturas com a certeza de que minha vigília além do túmulo não foi em vão, mesmo sabendo que tal certeza rapidamente se tornará apenas poeira no vento. Quero apenas um fim para tudo isso, e cada vez mais não importo com qual seja ele.

Bondosos senhores do destino, correspondam ao pouquíssimo que me resta de esperança e leve estas breves palavras à minha amada, junto ao meu alerta para que não carregue nenhum peso que ate sua alma ao mundo dos breves quando tiver de deitar-se ao eterno sono, pois nada me feriria tanto quanto vê-la neste mesmo abismo que eu.

Caso esta carta chegue de alguma forma ao seu destino, de fato alimentando os resquícios de minha invocada esperança, rogarei escrever-lhe outras, talvez portando menos aflição e mais afeição. Nunca minha fé em milagres foi tão grande, mesmo em meio a esse lugar negro e sem vida. Não perca também a sua.


Do seu amado,

Gregory