A DANÇA RUBRA DE LUNNA
— NOTAS PARA O ESQUECIMENTO —
By Ju Blasina
— CAPÍTULO II —
Amar
Até sentir
A carne viva
Minha vida nas ruas não foi muito longa — como se alguma vida assim fosse... A maior ironia está na semelhança que marca todas as passagens relevantes em minhas mais remotas memórias: a lua cheia. Sai das ruas da mesma forma com que fui entregue a elas – numa noite de lua cheia...
Antes de prosseguir, um aviso:
Não espere deste registro um grande comprometimento com a verdade. Como dito antes, trata-se de um mero exercício mental, uma tentativa de capturar antigas lembranças e atar o tempo a um pedaço de papel, que algum de meus criados converterá para interfaces contemporâneas e linguagem rebuscada, na esperança de torná-lo imortal. Quanta ironia! Pois bem, aviso dado, a história continua...
...Na noite de lua cheia em questão, um cara passou na esquina onde eu dançava. Jogou sobre mim seus olhos cobiçosos, junto a alguma grana e um papel contendo um endereço. Embora eu não soubesse ler, conhecia pessoas que sabiam e, seguindo o bilhete, na mesma noite eu estava empregada. Era um emprego razoável, com menos roupa que eu usava na esquina, porém com mais grana e alguma segurança. Sendo assim, tornei-me dançarina no que seria um estabelecimento intermediário entre os antigos bordeis e as modernas boates de stripe tease.
A coisa funcionava de forma similar ao que é hoje em dia: os caras podiam olhar e pagar por alguma “atenção especial”, mas nunca tocar, a menos que fosse para enfiar uma nota, raramente generosa, dentro de nossas roupas íntimas — enfiar outras coisas em lugares ainda mais íntimos era possível, mas requeria um depósito enorme no bolso do estabelecimento. Em outras palavras: eu fazia lá o mesmo que nas ruas, porém com um pouco mais de dignidade, ou “seja lá qual for” o nome que você queira dar. Pra mim era digno: não trapaceava ninguém, não era mais estuprada por vagabundos, nem me vendia por uma refeição indecente. Ainda me vendia, sim, mas por um preço consideravelmente melhor. E cumprir a cota que a casa exigia não era uma tarefa difícil; não para mim. Na maior parte das vezes eu só dançava, exibia meus dotes e masturbava uns idiotas — sei que parece ruim, mas não era de todo mal — para alguém que cresceu nas ruas, aquilo era barbada!
Muito pior que aturar os idiotas era lidar com as colegas de serviço — cobras exalando veneno por todos os poros. Eu fazia bem o meu trabalho, tentava ficar longe de encrencas e dançava como se cada dança fosse a última, como se dançasse para a lua... O que, em pouco tempo, me rendeu certo destaque acompanhado pelo ódio daquelas vadias. Era até divertido: elas me odiavam, os caras me amavam ou pelo menos pagavam por amor, e isso era ótimo: ganhava muita grana! Embora sempre acabasse a noite zerada, pois metade era da casa, acrescida de taxas pelo quarto, roupas, comida e ar respirado.
E ainda tem quem chame isso de vida fácil: ser enrabada por meia dúzia de trocados de um sujeito fedido, tendo que fingir que isso é ótimo... É, muito fácil! Babacas!
Conforme eu ia pegando o jeito, meu preço subia. O que era péssimo, pois poucos caras podiam pagar e os que podiam eram os que eu menos gostava: gente com grana não presta! Mas pelo menos eu recebia melhor, tinha meu próprio número no palco e já não precisava “dar/vender” tanto, a menos que eu quisesse e, por prazer, raramente eu queria.
Raramente, até aquela noite... Enquanto eu dançava, vi um cara— tá, tinha um monte deles, mas eu nunca os via. Aquele eu vi: sentado no bar, me olhando de longe, o desejo brilhava em seus olhos e eu os vi... Ele tinha uma cara de canalha, cabelo caído no rosto, barba por fazer, usava um jeans gasto e uma camisa branca um tanto justa no braço. Tinha uma jaqueta de couro sobre o ombro e calçava botas.
Assim que acabei o show, fui até o bar — não lembro o que eu vestia, mas provavelmente era uma roupa de show, o que era absurdo para os padrões da época, mas talvez fosse apropriado para usar na praia, se eu pudesse ir a uma, nos dias de hoje. Sentei no banco ao lado dele e pedi uma bebida ao John, o barman. O cara me deu uma olhada de canto de olho e um sorrisinho torto...
...Nossa! Como era bonito, o desgraçado! Disso, lembro com clareza: ele me olhou daquele jeito que a gente sente e instantaneamente pensa: “putz, tô perdida!” — e estava.
Ele pagou minha bebida e perguntou o meu nome. Respondi, em tom irônico:
— Tá no cartaz da porta, não leu?
— Não, não consegui reparar, entrei distraído — disse ele, com aquele sorrisinho safado que deveria ser proibido!
— Ah... E o que foi que te chamou tanta atenção, alguma dessas vadias?
— Talvez sim, talvez não, me diga você! — agora ele falava mais sério ou se esforçava para assim parecer.
John, que acompanhava nosso joguinho, através do espelho, enquanto limpava os copos, sabia que muitas vezes essas coisas acabavam mal e, como era meu amigo, permanecia atento. Se existe algo que não mudou em décadas, é a clientela desse tipo de lugar – aparece todo tipo de maluco! Mas aquele maluco era tão bonito, mas tão bonito que valia o risco. Continuei dando assunto:
— Difícil responder. Têm tantas delas aqui! A maioria, pra te dizer a verdade. Se tu disser como ela é...
— Se for uma vadia, é a melhor peça do lugar, talvez a melhor que eu já tenha visto! Pena que não goste de vadias...
— Bom, nesse caso... Pena pra elas, sorte pra mim! — sorri, roubando um gole da bebida dele.
Ele riu de novo daquele jeito perigoso e me olhou de um jeito que... Nossa, foi praticamente uma estocada! Suspirei fundo. Ele continuou:
— E então, vais me dizer como ela é? Tô doido pra saber...
— Hm, bom... O nome é Lunna, mas apesar de trabalhar aqui, ela não é vadia, só uma dançarina. Ela é quase tudo o que dizem ser, quase tudo o que mostra, só que melhor! – disse minha antiga eu, estúpida e egocêntrica.
Ele balançou a cabeça devagar, concordando, enquanto pegava o meu copo e bebia.
— Me diz uma coisa então, Lunna: como é que eu posso saber a diferença entre uma vadia e uma dançarina? Porque, pra mim, mesmo ela parecendo esperta e sendo um tesão, ainda parece uma vadia.
Senti meu rosto queimar de raiva. Cuspi a bebida de volta, no copo dele. E estava pronta pra virar a mão naquela cara de cafajeste, mas vi o sinal do John, pedindo para eu baixasse a bola, e baixei – esse tipo de encrenca significava ser posta na geladeira e ficar sem grana por um baita tempo, como na vez que arrebentei uma das “piranhas cascavéis”. Então, respirei fundo e me levantei para sair. Foi quando senti aquela mão forte pegando meu braço. Ele encostou a boca no meu ouvido e disse:
—Calma... Eu não quis te ofender. Só perguntei porque tô realmente interessado. Muito interessado! Se eu quisesse só uma transa, pagava por uma e não faria diferença se tu é vadia ou não, não achas?
John, ao ver o cara me pegando do meu braço, fez sinal para um dos seguranças. Num movimento brusco, desvencilhando meu braço daquela mão áspera, sem me afastar sequer um passo de onde eu estava – colada nele! Fiz um sinal com a cabeça, para o John ficar frio, e encostei no canalha – minha boca, a menos de um palmo da dele.
— Olha cara, se tu não gostas de vadias acho que vieste ao lugar errado e se tu queres saber, não tenho que provar porra nenhuma ao meu respeito pra um carinha qualquer de boate. Porque, mesmo tu sendo bem gostosinho, ainda parece um babaca!
Sai enfurecida, batendo o salto pelo salão, enquanto ele ria pelas minhas costas – ainda podia ouvir sons vindos do bar, um misto de vaias e palmas – os caras adoram por lenha na fogueira, e essa já tava ardendo!
Quando deixei a boate, quase de manhã, lá estava o sujeito desaforado, encostado numa moto daquelas grandes de viajar – Harley? Acho que é isso, ou o equivalente da época. Já não eram cavalos, disso eu tenho certeza! Sorri – por dentro – mas por fora tinha que parecer difícil.
— O é que é que um babaca faz parado aí? Esperando uma vadia, é? Ou será que tô enganada? Vai ver, não se trata só de um babaca, mas sim, de um daqueles tarados covardes que gostam de bater... Bom, vou logo avisando: não vai ser assim tão fácil quanto pensas!
Ele balançou a cabeça com um sorrisinho debochado e caminhou na minha direção
— Nem uma coisa, nem outra. Mas tens razão: Eu sou mesmo um babaca, o maior deles! Desculpa aí, vai... Posso começar de novo? Oi, meu nome é Brad - e esticou a mão para mim.
Fui pega de surpresa – já tinha a mão no bolso, segurando um canivete, mas respirei fundo... E resolvi dar uma chance a ele. Não era algo do meu feitio, mas... Sei lá, acho que olhei pra ele ali, esperando até amanhecer só para me pedir desculpas, depois de tudo o que eu havia dito... Ah, e ele era tão lindo! E eu, tão sozinha... Uma conjunção de fatores que me fizeram tomar aquela decisão idiota... Hoje eu sei disso – entre rostos borrados pelo tempo, ainda vejo os olhos dele e quase ouço aquele sorrisinho safado... Não dá pra escolher o que se apaga – Infelizmente, as memórias nos traem!
Aquele foi o começo do fim. Ou daquilo que eu acreditava ser o fim. Enfim, aquele foi o começo de toda a merda que se tornou a minha vida, enquanto eu tive uma. Eis a prova de que “não há nada ruim o suficiente que não possa ser piorado”. Especialmente quando a desgraça vem tão bem embrulhada – e aquele, era um embrulho e tanto! Um embrulho que eu tive o prazer de desfazer, de todas as formas possíveis.
Despindo
Ao abrir o casaco
De pele viva estava
Enfim: nua e crua
...continua...
Leia o início desta história em BRUMAS NEGRAS E-ZINE Nº1
Lunna é o tipo de persnoagem que me intriga, me deixa mais e mais curiosa...mas ok, sobrevivi até hoje ne. rs. Ju escreve divinamente!
ResponderExcluirbeijo!
Thanks! Semana que vem, a Lunna aparecerá novamente por aqui ;)
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